TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
301 acórdão n.º 72/21 2.2.2. No Acórdão n.º 654/11, divergiu da afirmação de não inconstitucionalidade o Senhor Conse- lheiro Joaquim de Sousa Ribeiro , através da seguinte declaração de voto: “[…] 1. Por confronto com a versão original do Código Penal de 1982, a incriminação do lenocínio, no que releva para a questão de constitucionalidade em juízo, resultou ampliada pela alteração introduzida com a Lei n.º 65/98, de 2 de setembro. Na referida versão de 1982, constava [artigo 215.º, n.º 1, alínea b) ], como elemento do tipo, a exploração, pelo agente, de uma ‘situação de abandono ou de extrema necessidade económica’ das pessoas dedica- das ao exercício da prostituição. A reforma de 1995 (Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março) já alargou um pouco essa previsão, na medida em que se contentou com a exploração de ‘situações de abandono ou de necessidade económica’ (artigo 170.º, n.º 1). O legislador de 1998 abandonou, pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, qualquer exigência quanto ao aproveitamento de uma situação de vulnerabilidade daquelas pessoas, suprimindo, pura e simples- mente, o segmento que a exprimia. 2. Como é orientação constante deste Tribunal – cfr., entre muitos outros, os Acórdãos n. os 426/91, 634/93, 650/93 e 311/95 – a incriminação de certas condutas, na medida em que implica uma restrição dos direitos funda- mentais à liberdade e/ou de propriedade, tem que ser justificada perante o princípio da proporcionalidade expresso naquela norma. Por força da sua repercussão negativa no âmbito de proteção destes direitos, a imposição de uma pena fica imediatamente sujeita à ‘restrição das restrições’ enunciada no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, devendo «limi- tar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». É, pois, como refração direta do princípio da proporcionalidade que o princípio da necessidade das penas, consensualmente apontado pela moderna penalística, corresponde a uma ineliminável exigência constitucional. Este princípio postula, não apenas uma intervenção mínima ou de ultima ratio do direito penal, só atuante, pressuposta a sua adequação, na falta ou ineficácia de instrumentos de proteção de outro tipo – cfr., por último, o Acórdão n.º 75/10 −, mas, antes do mais, a suficiente dignidade do bem jurídico tutelado, capaz de justificar o merecimento de punição, em caso de afetação. De forma que, neste contexto valorativo, o primeiro passo a dar, para aferir da legitimidade constitucional da incri- minação do lenocínio, é o da identificação precisa de bem jurídico-penal que ela visa tutelar. 3. O tratamento jurídico-penal dos crimes na esfera sexual evoluiu fortemente nas últimas décadas, como reflexo de alterações significativas nos padrões de conduta e nas conceções ético-sociais, neste domínio. Pode dizer-se que o elemento polarizador dessa evolução foi o franco acolhimento, também neste campo, da ideia valorativa da autonomia individual e do livre desenvolvimento da personalidade, em medida sem paralelo no passado. Essa mudança – porventura uma verdadeira ‘mudança de paradigma’ – traduziu-se, por um lado, num recuo na criminalização de condutas livremente assumidas por pessoas com maturidade e autonomia decisórias, e, por outro, num alargamento de incriminações, em resultado de uma consciência mais afinada dos deveres de respeito pela integridade moral e pela autodeterminação dos outros. A nível da nossa legislação, e para além de reestruturações e reconfigurações de alguns tipos, sobressai, como manifestação impressiva da orientação atual, um novo enquadramento sistemático. Na versão inicial do Código Penal de 1982, estes crimes figuravam no Título III (‘Dos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade’), Capítulo I (‘Dos crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida em sociedade’). Em 1995, os crimes sexuais foram transferidos para o título respeitante aos crimes contra as pessoas, sendo aí objeto de um capítulo autónomo. É neste capítulo que se insere a norma incriminadora do lenocínio, na secção respeitante aos ‘crimes contra a liberdade sexual’. Em face desta localização, dir-se-ia que é este o bem jurídico protegido pelo artigo 170.º, n.º 1, do CP. Mas esta conclusão revela-se algo apressada, pois não tem qualquer respaldo na estrutura tipológica da norma incriminadora. De facto, com a eliminação, na revisão de 1998, do segmento que estabelecia, como elemento do tipo, a exploração da vulnerabilidade situacional, em razão de abandono ou necessidade económica, da pessoa que se prostitui, desapareceu qualquer conexão com a proteção da vontade livre dessa pessoa. Essa conexão consta apenas do n.º 2
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