TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
299 acórdão n.º 72/21 matéria que não tem relevância no contexto do presente Acórdão, Catherine Mackinnen, Pornography: On Morality in and Politics , em Toward a Feminist Theory of State, 1989, que defende a incriminação da pornografia em face da sua ofensividade contra a imagem da mulher e a construção da respetiva identidade como pessoa. Também sobre tal lógica de construção do dano, cfr. Sandra E. Marshall, ‘ Feminism, Pornography and the Civil Law’ , em Recht und Moral (org. Heike Jung e outros), 1991, pp. 383 e segs., defendendo a autora que, na pornografia, o dano consistiria na negação da humanidade da mulher, sendo relevante para o tema do presente Acórdão a perspetiva de que ‘a perda da autonomia não é um assunto meramente subjetivo (...) a autonomia é negada mesmo que não se reconheça. Aqui pode ser traçado um paralelo com a escravatura (...). A própria condição da escravatura requer que o escravo não se veja a si próprio como alguém que possui ou a quem falta autonomia (...). Isto pode ser for- mulado dizendo que uma tal pessoa não se pode ver a si própria completamente. Como item da propriedade não possui um em si mesma’]. O entendimento subjacente à lei penal radica, em suma, na proteção por meios penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência, proteção diretamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana. Questão diversa que não está suscitada nos presentes autos é a que se relaciona com a possibilidade processual de contraprova do perigo que serve de fundamento à incriminação em casos como o presente ou ainda, naturalmente, com a prova associada à aplicação dos critérios de censura de culpa do agente e da atenuação ou eventual exclusão de culpabilidade, em face das circunstâncias concretas do caso. 9. Em face do exposto, não se pode considerar que estejam violados pela norma em crise quaisquer normas ou princípios constitucionais. […]” (itálicos acrescentados). 2.1.1. Em texto doutrinário posterior à prolação desta decisão (que ocorreu em 10 de março de 2004), a sua relatora, Conselheira Maria Fernanda Palma , em expressa alusão ao Acórdão n.º 144/04 – adiantando um debate que, quanto a este, ganharia expressão na jurisprudência do Tribunal (a partir de um voto diver- gente constante do Acórdão n.º 396/07, cfr. item 2.2.1., infra ) –, referiu o seguinte: “[…] A discussão sobre se a defesa de uma certa moralidade pode, em nome da coesão social inspirada na morali- dade dominante, justificar a intervenção do Direito Penal ou, pelo contrário, não a pode justificar em função do pluralismo ideológico e da liberdade de opção tem de ser travada, porém, tomando em conta a repercussão de certas condutas contrárias à moralidade dominante na interação social e o próprio conceito de bem jurídico. Na análise desta questão devem considerar-se, para além das perspetivas ideológicas que tradicionalmente contrapõem os pontos de vista mais liberais aos conservadores, todas as perspetivas científicas acerca do condicionamento da autonomia de pessoas sem maturidade física e emocional através [, designadamente,] da imposição de estereótipos. Se radicalizássemos o ponto de vista liberal, teríamos de rejeitar que o Direito Penal pudesse intervir em toda a área da sexualidade entre adultos e, provavelmente, excluiríamos qualquer proteção penal de pessoas que são submeti- das a enormes condicionamentos na sua autonomia sexual, apesar de persistir o livre consentimento formal, como sucede, por exemplo, no crime de lenocínio entre adultos. […]” (Maria Fernanda Palma, Direito Constitucional Penal, Coimbra, 2006, pp. 77/78). E, em nota de rodapé a este trecho (nota 69, pp. 77/78), aludindo à obra de John Stuart Mill, On Liberty, “como paradigma do pensamento liberal”, acrescentava a Autora a seguinte observação: “[…] Stuart Mill infere da liberdade individual a liberdade de procurar e de dar conselho, mas não já a licitude da conduta de quem, profissionalmente ou com finalidade lucrativa, contribua para condutas autolesivas (abrindo casas de jogo, traficando drogas ou explorando a prostituição…). Neste ponto, Stuart Mill concebe argumentos a favor de posições opostas: se o jogo, o consumo de drogas e a prostituição são lícitos, parece não ter sentido, em certa perspetiva, passarem a ser ilícitos só por causa da dedicação profissional ou da atividade lucrativa ( é esta,
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