TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
298 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio (artigo 135.º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de pornografia infantil [artigo 172.º, n.º 3, alínea e) , do Código Penal], sempre com fundamento na perspetiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados atos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao relaciona- mento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que derivam do princípio da dignidade da pessoa humana. 7. Por outro lado, que uma certa “atividade profissional” que tenha por objeto a específica negação deste tipo de valores seja proibida (neste caso, incriminada) não ofende, de modo algum, a Constituição. A liberdade de exercício de profissão ou de atividade económica tem obviamente, como limites e enquadramento, valores e direitos direta- mente associados à proteção da autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 471.º, n.º 1, e 61.º, n.º 1, da Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, como objeto de trabalho ou de empresa, atividades que possam afetar a vida, a saúde e a integridade moral dos cidadãos [artigo 59.º, n.º 1, alíneas b) e c) , ou n.º 2, alínea c) , da Constituição]. Não está assim, de todo em causa a violação do artigo 47.º, n.º 1, da Constituição. Nem também tem relevância impeditiva desta conclusão a aceitação de perspetivas como a que aflora no pronunciamento do Tri- bunal de Justiça das Comunidades (sentença de 20 de novembro de 2001, Processo n.º C-268/99), segundo a qual a prostituição pode ser encarada como atividade económica na qualidade de trabalho autónomo (cfr., em sentido crítico, aliás, Massimo Luciani, Il lavoro autonomo de la prostituta , em Quaderni Costituzionali , anno XXII, n.º 2, Giugno 2002, pp. 398 e segs.). Com efeito, aí apenas se considerou que a permissão de atividade das pessoas que se prostituem nos Estados-Membros da Comunidade impede uma discriminação quanto à autorização de perma- nência num Estado da União Europeia, daí não decorrendo qualquer consequência para a licitude das atividades de favorecimento à prostituição. 8. As considerações antecedentes não implicam, obviamente, que haja um dever constitucional de incriminar as condutas previstas no artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal. Corresponde, porém, a citada incriminação a uma opção de política criminal (note-se que tal opção, quanto às suas fronteiras, é passível de discussão no plano de opções de política criminal – veja-se Anabela Rodrigues, Comentário Conimbricense, I, 1999, pp. 518 e segs.), justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade eco- nómica e social, das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência. O facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social. Tal opção tem o sentido de evitar já o risco de tais situações de exploração, risco considerado elevado e não aceitável, e é justificada pela prevenção dessas situações, concluindose pelos estudos empíricos que tal risco é elevado e existe, efetivamente, no nosso país, na medida em que as situações de prostituição estão associadas a carências sociais elevadas (sobre a realidade sociológica da prostituição cfr., por exemplo, Almiro Simões Rodrigues, ‘Prostituição: – Que conceito? – Que realidade?’, em Infância e Juventude, […] n.º 2, 1984, pp. 7 e segs., e José Martins Barra da Costa e Lurdes Barata Alves, Prostituição 2001..., ob.cit. , supra ) não é tal opção inadequada ou des- proporcional ao fim de proteger bens jurídicos pessoais relacionados com a autonomia e a liberdade. Ancora-se esta solução legal num ponto de vista que tem ainda amparo num princípio de ofensividade, à luz de um entendimento compatível com o Estado de Direito democrático, nos termos do qual se verificaria uma opção de política criminal baseada numa certa perceção do dano ou do perigo de certo dano associada à violação de deveres para com outrem – deveres de não aproveitamento e exploração económica de pessoas em estado de carência social [cfr., com interesse para a questão da construção do conceito de dano nesta área e independentemente da posição sobre a pornografia aí defendida,
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