TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

297 acórdão n.º 72/21 do Direito […]; e Kelsen, Teoria Pura do Direito […] – este último, apesar da separação radical entre Direito e Moral, não deixa de reconhecer que o Direito pode tutelar valores morais, sem que, por isso, Direito e Moral se confundam; também Hart o reconhece em “ Positivism and the Separation of Law and Morals ”, Harvard Law Review, 1958; ver ainda, do mesmo autor, Conceito de Direito […]]. Mesmo as posições mais favoráveis à autonomia do Direito não negam que possam existir valores morais tutelados também pelo Direito, segundo a lógica deste e, por força dos seus critérios (sobre toda a problemática da relação entre a Moral e o Direito, veja-se, por exemplo, Arthur Kaufmann, Rechtsphilosophie, 2.ª edição, 1997, Kurt Seelmann, Rechtsphilosophie, 1994). Porém, questão prévia a tal problemática e decisiva no presente caso, é a de saber se a norma do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal apenas protege valores que nada tenham a ver com direitos e bens consagrados constitucionalmente, não suscetíveis de proteção pelo Direito, segundo a Constituição portuguesa. Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à norma do artigo 170.º, n.º 1, está inevitavelmente uma perspetiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (cfr., sobre a prostituição, nas suas várias dimensões, mas caracte- rizando-o como ‘fenómeno social total’ e, depreende-se, um fenómeno de exclusão, José Martins Bravo da Costa, ‘O crime de lenocínio. Harmonizar o Direito, compatibilizar a Constituição’, em Revista de Ciência Criminal, ano 12, n.º 3, 2002, pp. 211 e segs.; do mesmo autor e Lurdes Barata Alves, Prostituição 2001 – O Masculino e o Feminino de Rua, 2001). Tal perspetiva não resulta de preconceitos morais, mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de ação, situações e atividades cujo ‘princípio’ seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1.º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei n.º 23/80, em D.R., I Série, de 26 de julho de 1980), bem como, em 1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de outubro de 1991) . É claro que a esta perspetiva preside uma certa ideia cultural e histórica da pessoa e uma certa ideia do valor da sexualidade, bem como o reconhecimento do valor científico das análises empíricas que retratam o ‘mundo da prostituição’ (e note-se que neste terreno tem sido longo o percurso que conduziu o pensamento sociológico desde a caracterização da prostituição como anormalidade ou doença – assim, C. Lombroso e G. Ferro, La femme crimi- nelle et la prostituée , 1896, e, no caso português, os estudos de Tovar de Lemos, A prostituição. Estudo anthropológico da prostituta portuguesa , 1908, e, sobre as conceções da ciência acerca da prostituição no início do século, cfr. Maria Rita Lino Garnel, ‘A loucura da prostituição’, em Themis, ano III, n.º 5, 2002, pp. 295 e segs. – até ao reconheci- mento de que as prostitutas são vítimas de exploração e produto de uma certa exclusão social). Mas tal horizonte de compreensão dos bens relevantes é sempre associado a ideias de autonomia e liberdade, valores da pessoa que estão diretamente em causa nas condutas que favorecem, organizam ou meramente se aproveitam da prostituição. Não se concebe, assim, uma mera proteção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspetos de uma convivência social orientada por deveres de proteção para com pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspetiva moral, sem correspondên- cia necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da proteção da liberdade e de uma ‘autonomia para a dignidade’ das pessoas que se prostituem. Não está, consequentemente, em causa qualquer aspeto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo artigo 41.º, n.º 1, da Constituição, pois a liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por outro lado, nesta perspetiva, é irrelevante que a prostituição não seja proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade

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