TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

296 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL de arestos, numa linha decisória iniciada com a prolação do Acórdão n.º 144/04 – posteriormente a este, vide, designadamente, os Acórdãos n. os 196/04, 303/04, 170/06, 396/07, 522/07, 591/07, 141/10, 559/11, 605/11, 654/11, 203/12, 149/14, 641/16, 421/17, 694/17, 90/18, 178/18, 160/20 e 589/20 –, sendo todas essas decisões no sentido da não inconstitucionalidade e, recentemente, no Acórdão n.º 134/20 (trata-se da decisão aqui recorrida), no sentido da inconstitucionalidade. Destina-se o presente recurso, precisamente, a superar a apontada divergência, sendo o recorrente, pois, face aos termos do artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC, parte legítima. 2.1. No Acórdão n.º 144/04 – verdadeiramente a decisão matriz desta problemática na jurisprudência constitucional (que podemos definir como a constitucionalidade da incriminação do lenocínio, na descrição típica introduzida pela Lei n.º 65/98) –, o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional a norma (ao tempo) constante do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal [“[q]uem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de atos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos” (a autonomização da prática de atos sexuais de relevo, “caiu” do tipo do lenocínio com a reforma do Código Penal corporizada na Lei n.º 59/2007, sendo intuitivo que a materialidade subjacente ao trecho suprimido não deixava de estar contida no conceito de prostituição)]. Importa recordar, nos seus traços mais expressivos, os fundamentos dessa decisão do Tribunal de há 16 anos: “[…] 5. O ponto de vista que a recorrente apresenta ao Tribunal Constitucional consubstancia-se no seguinte: – os bens jurídicos protegidos pela norma em crise são, em primeira linha, ‘sentimentalismos transpessoais’, valores de ordem moral e não bens pessoais como a liberdade e autodeterminação sexual; – não sendo a prostituição em si punível, incriminar-se a atividade comercial ou lucrativa que tem por base a prostituição ou ‘atos similares’ corresponde a privar os cidadãos de exercer uma atividade profissional por imposição de regras morais. A pergunta a que importa responder é, portanto, a de saber se fere alguma norma ou princípio constitucional a incriminação das condutas que constituem a factualidade típica do artigo 170.º. 6. Não se terá, aqui, de responder à questão geral sobre se o Direito Penal pode, constitucionalmente, tutelar bens meramente morais, questão que não pode ser resolvida sem o esclarecimento prévio do que se entende por bens puramente morais e que não pode deixar de tomar em consideração que há valores e bens tidos como morais e que relevam, inequivocamente, no campo do Direito. A relação entre o Direito e a Moral ou o Ethos tem sido objeto de uma controvérsia muito importante, sendo uma das questões fundamentais da Filosofia do Direito. Com efeito, desde a tradição liberal radicada em Stuart Mill ( On liberty, 1859) ou mesmo do pensamento de Kant ( Metaphysik der Sitten, 1797), em que o Direito se situa apenas no plano do dano ou do prejuízo dos interesses ou da violação dos deveres (externos) para com os outros até às conceções de uma total fusão entre o Direito e a Moral, em que se reconhece que o Direito tem legitimidade para impor coletivamente valores morais (assim, por exemplo, no pensamento anglosaxónico, Patrick Devlin, em The Enforcement of Morals, 1965, em nome da manutenção da identidade da sociedade), temse mantido acesa a discussão. Apesar das duas posições extremas – a da separação absoluta entre o Direito e a Moral e a da total coincidência entre Direito e Moral – é amplamente aceite que o Direito e a Moral, embora a partir de perspetivas diferentes, fazem parte de uma unidade mais vasta (assim, Arthur Kaufmann, Recht und Sittlichkeit, 1964, p. 9, e, de modo introdutório à questão, J. Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1990, pp. 59 e segs.). Assim, tanto quem procure em valores morais a legitimação do Direito, como quem acentue a distinção entre Moral e Direito, reconhecerá, inevitavelmente, que existem bens e valores que participam das duas ordens norma- tivas [partindo de conceções diversas sobre o Direito, mas coincidindo neste último ponto, cfr. Radbruch, Filosofia

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