TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

294 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL de carência e desproteção social, interferindo com – colocando em perigo – a autonomia e liberdade do agente que se prostitui”; existe, em tais casos – e corresponde ao entendimento deste Tribunal desde a decisão de 2004 – , uma genérica e preponderante apetência da ação descrita no tipo para o desencadear de eventos ou criar situações cujo desvalor (cuja danosidade), causalmente conexionado, imediata ou mediatamente, com o exercício da prostituição, o legislador quis antagonizar, através do instrumento de atuação do Estado correspondente à perseguição criminal, sendo certo que a opção por essa via ocorre num quadro racionalmente compreensível de valoração das potencialidades desvaliosas da realidade social envolvida (precursora, desencadeada ou propiciada) no conjunto de situações correspondentes ao fomen- to, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição, por parte de alguém, que não o próprio agente do crime, num quadro de atividade profissional ou de um exercício com intenção lucrativa. IV – Vale esta opção na intencionalidade que lhe subjaz, independentemente do tratamento legal confe- rido na nossa Ordem Jurídica aos atos de prostituição, em si mesmos considerados, concretamente à subtração destes a qualquer tipo de perseguição sancionatória, através de uma política usualmente qualificada – e que corresponde à realidade portuguesa – como abolicionista, por oposição a uma política proibicionista ou a um enquadramento legal de tolerância regulamentadora; essa opção não descarta sancionar (mesmo até criminalizar) a compra de serviços sexuais ou os comportamentos de terceiros (dos “clientes”) comummente utilizados para a obtenção desses serviços. V – Não estando, manifestamente, em causa “[…] saber se a incriminação do lenocínio, nos moldes em que se se encontra prevista, traduz a melhor opção ao nível da política criminal”, importa notar que “[…] o critério da necessidade de tutela penal, enquanto decorrência do princípio da proporcio- nalidade, na dimensão acolhida no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, foi sempre apreciado pela jurisprudência constitucional proferida sobre a incriminação do lenocínio”, o que não impediu que se concluísse pela “[…] legitimação material da norma incriminadora constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, à luz do princípio da proporcionalidade”; de onde resulta uma liberdade, com amplitude muito considerável, do legislador em punir ou não punir os comportamentos, neste âmbito, com o que nisso vai implicado em termos de não proibição constitucional da solução adotada. VI – Existe uma diferença substancial entre a mera atividade de prostituição (não punida), e a (outra) atividade que a fomenta, favorece ou facilita, deslocando a segunda do campo da mera liberdade indi- vidual para uma constelação de relações sociais muito mais complexas, e desligadas das circunstâncias referenciáveis à individualização do ato de prostituição, que é inevitavelmente próxima – demasiado próxima – de movimentos, nacional e internacionalmente organizados; com tal proximidade se gera um risco socialmente inaceitável, que não exorbita o âmbito de proteção da norma, nem dele é sequer periférico, porque se trata de um risco conatural ao proxenetismo, cujo empresário – como o de qual- quer outro negócio – tende a organizar-se de modo a potenciar o lucro, objetivo ao qual, mais tarde ou mais cedo, dificilmente escapará (o dano d)a vontade e (d)a liberdade das pessoas que se prostituem; mesmo que a expressão exploração esteja fora do tipo – e, como tal, não seja facto a provar in concre- to – o risco da sua materialização é suficientemente forte para conter a norma dentro dos limites da proporcionalidade e, em particular, da necessidade da intervenção penal. VII – É o sentido da linha decisória a este respeito assumida, e diversas vezes reiterada, pelo Tribunal Cons- titucional desde 2004, num entendimento geral desta questão que ora cumpre, em oposição ao Acór- dão recorrido, afirmar de novo.

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