TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

226 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL liberdade-de-participação tornada possível pela intervenção do legislador, com a consequência de que «uma lei que apenas parcialmente o efetive [ao direito fundamental] não poderá deixar de corresponder à ablação do seu âmbito restante.» Ainda que a decisão não o refira expressamente, este modo de colocar a questão implica o reconheci- mento de um dever acessório de o legislador não limitar ou destruir as condições normativas para o exercício de um direito fundamental, dever este que tem carácter negativo e cujo cumprimento, ainda que por referên- cia a um dever principal de prestar com carácter positivo, pode ser controlado pela jurisdição constitucional no domínio da fiscalização da constitucionalidade por ação, ou seja, através da apreciação da conformidade constitucional de uma norma restritiva de direitos. Não é difícil antever as implicações deste raciocínio em matéria de proteção judicial dos direitos positivos em geral, mormente os direitos sociais, sempre que se trate de sindicar a constitucionalidade de uma norma que opera a exclusão de certa categoria de pessoas do acesso a um bem ou uma regressão constitucionalmente relevante no nível de proteção anteriormente concedido pela lei. Trata-se, em suma, de integrar os direitos positivos, na medida em que isso se mostre dogmatica- mente viável, no modelo geral do controlo judicial das restrições a direitos fundamentais. Onde já não posso acompanhar a decisão é no modo como justifica a existência de uma restrição legal do direito de participação política através da apresentação, por grupos de cidadãos eleitores, de candidatos a eleição de órgãos das autarquias locais. A fundamentação contém dois argumentos distintos para concluir que a norma sindicada tem carácter restritivo: o de que através dela os cidadãos «ficam impedidos de propor qualquer candidatura de base extrapartidária» a todos os órgãos eletivos do concelho; e o de que impede a apresentação de candidatos a eleições em «em condições paralelas às dos partidos políticos», ou seja, «sem intermediação» e «em paridade» com estes. Nenhum destes argumentos se me afigura persuasivo. Creio que o primeiro repousa numa premissa errada. Nada impede que um cidadão proponha candi- datos a todos os órgãos eletivos do «concelho» – o que apenas se pode dizer por comodidade de expressão, visto que município e freguesia são categorias diversas de autarquia local −, integrando um grupo de eleitores para efeitos da candidatura aos órgãos municipais e outro para efeitos da candidatura a uma assembleia de freguesia. Sendo certo que o proponente não pode integrar um grupo de cidadãos que pretenda concorrer aos mandatos dos órgãos municipais e de uma das freguesias que não aquela em que se encontra recenseado, o que daí se retira não é que o direito de participação do cidadão sofra uma ablação de conteúdo, pois o direito que tem é o de propor candidatos e não o de integrar um determinado grupo de cidadãos constituído para esse efeito. O segundo argumento prova demais. É verdade que a norma sindicada impede que um determinado grupo de cidadãos eleitores apresente candidatos a todos os órgãos autárquicos de um «concelho», ao passo que os partidos políticos podem concorrer aos órgãos municipais e das várias freguesias. Mas resta explicar em que medida ou por que razão essa falta de paridade atinge o direito de participação política do cidadão individual, plenamente livre de constituir ou integrar distintos grupos de cidadãos eleitores para concorrer a eleições de nível municipal e da freguesia. De resto, se a paridade fosse levada às últimas consequências, a circunstância de a lei não permitir a criação de grupos de cidadãos eleitores a uma escala nacional ou regional deveria ser considerada uma medida restritiva, visto que estabelece uma diferença de tratamento entre parti- dos políticos e grupos de cidadãos. Apesar de distintos, estes argumentos procedem do mesmo equívoco ou cometem a mesma falácia: a reificação dos grupos de cidadãos eleitores. É claro que, a partir-se da premissa de que estes, enquanto sujeitos constitucionais, têm um direito de participação política, o facto de a lei não permitir que um determinado grupo se candidate aos órgãos municipais e das várias freguesias constitui simultaneamente uma limitação da participação eleitoral e uma diferença de tratamento em relação aos partidos políticos. Sucede que o direito de participação através da apresentação de candidatos a eleições autárquicas é dos cidadãos individuais e não dos grupos de cidadãos. Estes, ao contrário dos partidos políticos, não têm existência autónoma, vocação duradoira ou interesses próprios; correspondem ao resultado contingente do exercício dos direitos a apresentar candidatos por parte dos indivíduos que os constituem e têm relevância jurídica exclusivamente enquanto e na medida

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