TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

198 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL material de um direito de impugnação judicial que a Constituição confere ao administrado (acoimado) por ela visado (artigo 268.º, n.º 4), nem a garantia da tutela jurisdicional efetiva plasmada no artigo 20.º da Constituição. Razão que impõe um juízo de inconstitucionalidade, por violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, da norma contida no n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, quando interpretada no sentido de estabelecer uma presunção inilidível em relação ao autor da contraordenação, independente- mente da prova que sobre a autoria for feita mesmo em processo judicial. 16. Finalmente, a norma do n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, pode ainda ser confrontada – tal como fizeram as decisões recorridas nos casos que suportam o pedido de generalização do juízo de inconstitucionalidade – com o princípio da presunção da inocência. A primeira questão que, neste contexto, importa analisar, é a de saber se o direito do arguido a que seja presumido inocente até ao trânsito em julgado de sentença de condenação, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, se estende, por força do disposto no n.º 10 do mesmo artigo, aos processos jurisdicionais de impugnação de contraordenações. A essa questão não pode deixar de se dar uma resposta afirmativa. No Acórdão n.º 397/17 e no Acór- dão n.º 675/16 afirmou-se que o princípio da presunção de inocência pertence àquela classe de princípios materiais do processo penal que, enquanto constitutivos do Estado de direito democrático, são extensíveis ao direito sancionatório público, pelo que este princípio encontra, pois, aplicação também no processo con- traordenacional, como decorre dos n. os 2 e 10 do artigo 32.º da Constituição. Mais se afirmou que o estatuto processual do arguido no processo contraordenacional, enformado pela garantia da presunção de inocência, permite, por exemplo – e para o que agora releva –, que o tratamento do arguido ao longo de todo o processo seja configurado sem perder de vista a possibilidade de verificação da sua inocência, não sendo de admitir, designadamente, que o arguido seja tido como culpado antes de o tribunal formalizar o juízo sancionatório de forma necessariamente fundamentada. Ora, o entendimento da norma ora questionada como estabelecendo uma presunção inilidível da auto- ria do ilícito de não pagamento de taxas de portagem, não pode deixar de se ter como violadora do princípio da presunção da inocência. De facto, ao entender-se que a norma estabelece uma presunção inilidível da prática do ilícito, o arguido é tido como autor do mesmo independentemente da prova que possa vir a fazer em juízo destinada a demonstrar a sua inocência. Tal entendimento normativo afronta diretamente e de forma intolerável o princípio da presunção da inocência, já que o que tal norma determina é precisamente uma presunção inabalável de culpabilidade. Note-se que não é a simples previsão de uma presunção legal que comporta a violação do princípio agora em análise. Como se afirmou também no já citado Acórdão n.º 135/09, não se questiona a possibilidade de o legislador, mesmo em matéria sancionatória estabelecer presunções. O que é intolerável é a existência de presunções inilidíveis em contexto sancionatório, quando reportadas à autoria da prática de infrações. De facto, tais presunções inilidíveis traduzem-se em conclusões inabaláveis de autoria ou culpabilidade, que, por isso, sempre valerão independentemente de toda a prova que o arguido possa fazer e da convicção que o juiz possa firmar. Neste último ponto, importa sublinhar que o sentido do princípio da presunção da inocência influi diretamente sobre a apreciação da prova e sobre o princípio da livre convicção do julgador (assim, Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, “Anotação ao Artigo 32.º”, in Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, Universidade Católica Editora, 2017, p. 526). Ora, uma presunção inilidível sobre a prática de um ilícito não permite ao tribunal procurar a verdade ou relevar qual- quer prova sobre a autoria dos factos, nunca podendo, como afirma a decisão recorrida, fazer sequer atuar o princípio in dubio pro reo quando não se consiga firmar convicção sobre a efetiva autoria dos factos. Assim, quer por impedirem ao arguido afastar uma presunção de autoria de um ilícito, quer ainda por impedirem ao tribunal de formar livremente a sua convicção sobre a mesma, tal norma não pode deixar de violar o princípio da presunção da inocência.

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