TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
195 acórdão n.º 172/21 Interpretada da forma como o foi pelos tribunais, a presente norma pode impor a responsabilidade pelo pagamento dos valores devidos pela portagem e contraordenação a quem não tenha qualquer ligação com o autor da prática da infração. De facto, ainda de acordo com a referida interpretação, decorrido o referido prazo de trinta dias, o ex-proprietário do veículo – ainda que comprovada a venda do mesmo, mas não se encontrando a mesma registada –, responderá sempre pela prática das contraordenações em causa, decorrido o aludido prazo. Ora, tal responsabilização faz perigar o núcleo essencial do princípio da culpa que, ainda que em matéria de contraordenações, se impõe ser reconhecido, sob pena de postergar um mínimo de previsibilidade sobre as consequências dos comportamentos individuais, o que é insustentável num Estado de direito. De resto, tal solução legal não se afigura minimamente proporcional às pretensões do legislador: obter o pagamento de taxas de portagem e a responsabilização contraordenacional pela falta desse pagamento. Como acima se verificou, por infrações mais graves ( v. g. , infrações estradais), a lei não estabelece qualquer presunção juris et de iure de responsabilização contraordenacional. Face ao exposto resta concluir, pois, que a presunção inilidível, em sede de processo judicial, de respon- sabilidade do titular do documento de identificação do veículo ou do locatário que resulta do decurso do prazo previsto na lei para a indicação do condutor, viola o conteúdo mínimo do princípio da culpa. Poderá argumentar-se que essa presunção tem suficiente autonomia em relação à questão, em si mesma considerada da transferência da responsabilidade. Isto é, que se trata aí já de uma questão essencialmente processual e, nesse sentido, já só indiretamente poderia implicada no princípio da culpa. No entanto, o n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, pressupõe, tem mesmo como elemento inexorável, uma transferência de responsabilidade. Que começa por emergir dos números anteriores do mesmo preceito (em especial, do seu n.º 3), mas que se apenas consuma no n.º 6, em virtude do qual se torna irreversível e inelu- tável. É por isso que a norma decorrente deste n.º 6 comporta – não apenas (como veremos já de seguida), mas também e desde logo –, uma violação do princípio da culpa. 14. Mas se o princípio da culpa sai afrontado com a dimensão normativa ora em discussão, a norma desaplicada poderá afrontar ainda a garantia do direito de defesa em processo jurisdicional de impugnação de contraordenações. A decisão recorrida invocou a violação do artigo 32.º, n.º 10, da Constituição e das garan- tias de acesso à tutela jurisdicional efetiva, previstas no artigo 20.º, n. os 1 e 4, da mesma Lei Fundamental. No que diz respeito ao n.º 10 do artigo 32.º, referiu-se no Acórdão n.º 180/14 que o mesmo releva “no plano adjetivo e significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção contraordenacional ou administrativa sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, p. 363, e Acórdãos do Tribunal Constitucional n. os 160/04 e 161/04)”. Por outro lado, tem-se referido que “com a introdução dessa norma constitucional (efetuada, pela revi- são constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar, nesses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (…). Tal norma implica tão-só ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, admi- nistrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (…)” – Acórdão n.º 659/06. No Acórdão n.º 469/97, o Tribunal Constitucional afirmou que as exigências decorrentes do n.º 10 do artigo 32.º valem não apenas para a fase administrativa, mas também para a fase jurisdicional do processo, sublinhando-se que “não fará sentido aceitar que os mesmos não tenham projeção na fase recursória pos- terior, que corresponde à jurisdicionalização daquele processo. Na verdade, esta segunda fase significa um
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