TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

19 acórdão n.º 123/21 procurado excluir a punibilidade da mesma em situações que se lhe afiguravam mais gravemente contrárias à autonomia individual da pessoa em sofrimento, relativamente à adoção e concretização de uma decisão central na existência de qualquer ser humano e, por conseguinte, também relevante quanto à sua dignidade como pessoa. XV – Sucede que a atuação dessa autonomia pessoal reconhecida pelo legislador implica a colaboração (voluntária) de terceiros, estando em causa situações em que só por via de exclusão da perseguição e punição criminal é possível assegurar uma efetiva possibilidade de escolha a quem pretende decidir como e quando termina a sua vida; a colaboração de um terceiro na disposição da vida de alguém é pro- blemática, na medida em que já não está em causa apenas uma atuação individual de quem põe termo à sua própria vida, por isso aquela disposição da vida ganha relevância jurídica e entra em conflito com a indisponibilidade e a inviolabilidade da vida humana – dimensão objetiva do direito à vida consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição e fonte do dever estadual de proteção deste bem jurídico. XVI – A opção do autor do Decreto n.º 109/XIV foi a de afastar os casos previstos na norma do respetivo artigo 2.º, n.º 1, das regras punitivas; ciente da tensão entre o dever de proteção da vida e o respei- to da autonomia pessoal em situações-limite de sofrimento, aquela opção funda-se numa conceção de pessoa própria de uma sociedade democrática, laica e plural dos pontos de vista ético, moral e filosófico; de acordo com tal conceção, o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias; o contrário seria incompatível com a noção de homem-pessoa, dotado de uma dignidade própria, que é um sujeito autoconsciente e livre, autodeterminado e autorresponsável, em que se funda a ordem constitucional portuguesa; a vulnerabilidade de uma pessoa originada pela situação de grande sofrimento em que se encontre pode criar uma tensão relativamente ao artigo 24.º, n.º 1, da Constituição devido à vontade livre e consciente de não querer continuar a viver em tais circunstâncias; a proteção absoluta e sem exceções da vida huma- na não permite dar uma resposta satisfatória a uma tal tensão, pois tende a impor um sacrifício da autonomia individual contrário à dignidade da pessoa que sofre, convertendo o seu direito a viver num dever de cumprimento penoso; por isso mesmo, o legislador democrático não está impedi- do, por razões de constitucionalidade absolutas ou definitivas, de regular a antecipação da morte medicamente assistida. XVII – No entanto, na conformação de tal regulação, o legislador tem de observar limites, designadamente os que decorrem dos deveres de proteção dos direitos fundamentais que estão em causa na antecipa- ção da morte medicamente assistida a pedido da própria pessoa; para além da salvaguarda da volun- tariedade da colaboração dos terceiros, maxime  a possibilidade de os mesmos invocarem objeção de consciência, impõe-se a proteção da autonomia e da vida da própria pessoa que pretende antecipar a sua morte; esta encontra-se numa posição vulnerável, estando em causa a adoção de uma decisão cuja concretização se traduz num resultado definitivo e irreversível, pelo que a mesma só deve ser atendida desde que existam garantias suficientes de se tratar de uma genuína expressão da autode- terminação esclarecida de quem a toma, sendo no quadro da definição de tais garantias que assume relevância a importância objetiva do bem vida. XVIII – O Estado, nas suas diversas expressões institucionais e funcionais, não pode ser neutro no que à vida humana diz respeito: tem de a proteger e promover; do ponto de vista constitucional, a morte volun- tária não é uma solução satisfatória e muito menos normal, pelo que não deve ser favorecida; o que deve promover-se é antes a vida e a sua qualidade, até ao fim, de onde decorre, com fundamento na

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