TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

171 acórdão n.º 171/21 DECLARAÇÃO DE VOTO Subscrevo o entendimento perfilhado nesta decisão de que a ordem habitual de conhecimento dos vícios, quando ao Tribunal Constitucional é pedida a fiscalização da constitucionalidade e da legalidade, não obedece a nenhuma exigência incondicional, devendo ser relativizada por uma cláusula ceteris paribus : deve começar-se pelo conhecimento das questões de constitucionalidade, atenta a gravidade superior do vício, se tudo o mais se mantiver constante – o mesmo é dizer, se não houver razões especialmente ponderosas para o conhecimento prioritário da questão de ilegalidade. Este é precisamente um dos casos em que a exceção se verifica: é sumamente conveniente, pelas razões aduzidas na decisão, apreciar primeiro a legalidade das nor- mas sindicadas. Porém, falta fundamentar a afirmação de que a declaração de ilegalidade torna dispensável a apreciação da constitucionalidade de uma determinada norma. Creio haver dois argumentos decisivos a favor desta conclusão. Em primeiro lugar, trata-se de uma extensão da jurisprudência constitucional em matéria de ordem de conhecimento e relação consuntiva de diversos tipos de vício de inconstitucionalidade. Embora não exista nenhuma hierarquia formal de normas constitucionais – todas gozando da força jurídica própria do estalão constitucional –, os vícios de inconstitucionalidade admitem uma graduação em função da maior ou menor onerosidade da sua remoção, numa escala que tem como ponto mínimo a inconstitucionalidade formal, que pode ser removida mediante a repetição do ato pela forma adequada ( v. g. , lei orgânica em vez de lei, para os atos previstos no n.º 2 do artigo 166.º), e como ponto máximo a inconstitucionalidade material em domínios de incidência da cláusula de limites materiais de revisão constitucional (artigo 288.º). Ora, se isto é verdade, nunca o Tribunal Constitucional atribuiu a tais considerações importância decisiva na definição da ordem de tratamento das questões, nem sobretudo deixou de afirmar expressamente ou presumir como evidente que a verificação de vícios de inconstitucionalidade formal ou orgânica, apesar da sua menor essen- cialidade, dispensa a apreciação de eventuais vícios de inconstitucionalidade material (vide, entre muitos, os Acórdãos n. os 420/18 e 221/19). Está claro que as normas constitucionais e as que constam de leis de valor reforçado integram patamares diversos do sistema de fontes, ao contrário do que sucede com as normas constitucionais. Mas a diferença é de grau ou relativa, visto que o vício de ilegalidade é indiretamente um vício de inconstitucionalidade, por violação das normas constitucionais que definem a hierarquia dos atos normativos (artigo 112.º), nomeadamente através da atribuição a determinadas categorias de atos legislativos de um valor reforçado. O mais que se pode dizer é que, atenta tal diferença de grau, só razões ponderosas, como as que excecionalmente se verificam nos presentes autos, podem justificar o conhecimento prioritário dos vícios de ilegalidade e a eventual dispensa da apreciação da constitucionalidade de normas, ao arrepio da prática habitual na jurisprudência constitucional. Em segundo lugar, não há diferença jurídica assinalável entre declaração de ilegalidade e de incons- titucionalidade num processo de fiscalização abstrata sucessiva. O efeito pretendido pelos requerentes é a eliminação de determinadas normas da ordem jurídica, o que pode ser alcançado indistintamente através da declaração de ilegalidade ou de inconstitucionalidade. É certo que a justiça constitucional tem uma voca- ção objetivista, no sentido em que as suas decisões têm uma relevância que transcende a tutela jurídica dos direitos e interesses das partes que a ela recorrem. É ainda verdade que essa vocação é praticamente exclusiva nos processos de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade (e da legalidade), processos estes em que a legitimidade dos requerentes assenta na sua posição geral perante a ordem constitucional, em que não se pode falar rigorosamente de um processo de partes ou «adversarial» e em que a decisão do Tribunal Constitucional tem eficácia geral, revestindo-se da forma de uma declaração com força obrigatória geral. Mas importa não confundir interesse jurídico objetivo com especulação desinteressada ou interesse intelectual. Os tribunais não são órgãos consultivos, autoridades académicas ou sociedades científicas; a sua missão é administrar a justiça e não – pelo menos diretamente – contribuir para o enriquecimento da cultura jurídica ou o esclarecimento das vexatae quaestiones que prendem a atenção doutrinária. O objetivismo significa que os interesses tutelados pela justiça constitucional não são apenas os das partes – que no caso da fiscalização

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=