TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
17 acórdão n.º 123/21 a antecipação da morte medicamente assistida implica a atuação de um procedimento administrativo especial, de caráter autorizativo, destinado a comprovar a verificação das condições de que, nos termos legais, depende o direito de uma pessoa obter a colaboração de profissionais de saúde na antecipação da sua própria morte; ou, na perspetiva destes últimos, de os mesmos poderem envolver-se na preparação e execução de um ato de antecipação da morte de uma pessoa, a pedido desta, sem temerem uma persegui- ção criminal, visto encontrarem-se, atenta a observância no caso concreto das referidas condições legais, libertos do dever de não matar ou de não prestar ajuda ao suicídio. VII – A opção legislativa, consagrada nos seus traços essenciais no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV, reporta-se, na sua substância, a montante da incidência jurídico-penal (que releva apenas consequencial- mente como decorrência da instituição daquele procedimento), a uma categoria de práticas de fim de vida, manifestando o Decreto a opção do legislador não só de as descriminalizar, em certas condições (por via da mera não punibilidade de condutas que, não fora essa opção, permaneceriam puníveis), mas de as regular – e, assim, de as legalizar – no quadro (e apenas no quadro) de um procedimento administrativo autorizativo e de execução que o próprio Estado institui e regula em todas as suas fases e com intervenção (não apenas, mas sempre) de entidades de natureza pública; perante a alternativa resultante da opção legislativa em causa no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV entre a prática da ou ajuda à morte medicamente assistida não punível – verificados os pressupostos, cumulativos (ou alternativos) previstos igualmente no n.º 1 do artigo 2.º –, não pode deixar de ser considerado, ao equacionar a conformidade constitucional da norma constante de tal artigo, o parâmetro constitucional relativo ao direito à vida. VIII – A questão de constitucionalidade de saber se, ao consagrar a antecipação da morte medicamente assistida não punível, incluindo os concretos elementos de previsão questionados pelo requerente, se mostra violado o direito à vida, tal como consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, porque respeita ao próprio sentido prescritivo da norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIX, é prévia a qualquer outra, uma vez que só tem sentido e utilidade discutir vícios que afetem elementos ou partes dessa mesma norma desde que tal norma globalmente considerada, atento o seu sentido prescritivo, possa subsistir à luz do parâmetro constitucional; isto é assim porque aquela antecipação implica a colaboração voluntária e causal de terceiros, designadamente dos profissionais de saúde e da própria Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Antecipação da Morte (CVA) por via do seu parecer favorável (abstraindo já da atuação da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde – IGAS) na morte de uma pessoa a seu pedido. IX – A posição cimeira do direito à vida é evidenciada, desde logo, pelo elemento literal do texto constitu- cional, situando-o «no core dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos»; a peculiar feição do direi- to à vida, traduz-se em «[apresentar-se] em regra como um direito de tudo ou nada – no sentido de que não são concebíveis ataques parcelares à vida sem perda dessa mesma vida – avesso a operações de concordância prática e cujo conteúdo tende a coincidir com o seu conteúdo essencial»; contudo, essa proteção sendo especialmente qualificada, próxima até da ideia de absolutização, não tem exatamente esse significado; no caso do artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, o grau superior de qualificação assu- mido pela afirmação enfática da inviolabilidade da vida humana, exige um nível protetivo congruente com a forte identidade axiológica que o caracteriza, o que não exclui em absoluto, a consideração de fatores de ponderação que permitam dar resposta, na projeção dessa inviolabilidade, a circunstâncias especiais – neste caso muito especiais – que devam ser efetivamente consideradas em contextos consis- tentemente desafiantes em que os pressupostos da absolutização – a “libertação” de quaisquer condi- ções ou espaços de ponderação – são testados ao limite, exigindo respostas nem sempre acomodáveis à projeção de uma rigidez levada ao paroxismo.
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