TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

114 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL morrer, se expresse no sentido de que se encontra numa «situação de sofrimento intolerável». Porém, nada na lei impõe ou mesmo sugere tal interpretação − a expressão «situação» tem uma conotação fortemente objetiva − e o Tribunal Constitucional, mesmo que se admitisse em abstrato a sua legitimidade para impor uma interpretação constitucionalmente conforme da lei, não teria forma de garantir, num sistema de con- trolo que não admite a queixa constitucional e em que a jurisprudência é pouco acessível e mal estudada, que tal interpretação fosse perfilhada pelos destinatários. Penso, assim, que a norma constante do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto é inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição – por outras palavras, por constituir uma restrição excessiva do direito ao livre desenvolvimento da personalidade. 8. Resta-me fazer algumas observações sobre a posição que fez vencimento. Tenho as maiores reservas quanto ao modo como se delimitou o objeto do processo, que me parece descaracterizar a distinção – firmada em décadas de jurisprudência constitucional – entre o conceito meto- dológico de norma, matéria que há muito vem ocupando a teoria jurídica, e o conceito funcional de norma, delimitado tendo em vista a missão específica da justiça constitucional. Mas mesmo dando de barato a noção de «norma completa» acolhida na decisão – sem deixar de notar que a questão da individuação das normas é objeto de uma intensa e antiga controvérsia académica que o Tribunal Constitucional faria bem em evitar −, não vejo como se possa afirmar que a decisão de inconstitucionalidade incide sobre uma única norma extraída do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto, nem que «não seria concebível em sede de fiscalização abstrata sucessiva que (…) a norma pudesse continuar a vigorar expurgada do critério então considerado incons- titucional.» Atendendo ao facto de a maioria ter votado a inconstitucionalidade por o conceito de «lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico» ser excessivamente indeterminado, é evidente que, se se tratasse de fiscalização abstrata sucessiva, manter-se-ia em vigor a norma que permite a antecipação da morte medicamente assistida em caso de «doença incurável e fatal» − ou, se quisermos ser totalmente rigorosos, das normas que permitem a antecipação da morte praticada, a primeira, ou ajudada, a segunda, por profissionais de saúde, em caso de «doença incurável e fatal», desde que verificados os demais pressupostos legais. Tudo isto teria ainda implicações quanto ao alcance das inconstitucionalidades conse- quenciais. É claro que, tratando-se de fiscalização preventiva, o problema é destituído de relevância prática – segundo o disposto no n.º 1 do artigo 279.º da Constituição, deverá o Presidente da República vetar o diploma e devolvê-lo à Assembleia da República. A decisão admite em termos muito restritivos a disponibilidade da vida, afirmando-se que – ao contrário do que estranhamente se concede poder ser o caso noutras ordens constitucionais, como a alemã e a aus- tríaca, que não se distinguem no essencial da nossa em matéria de direitos fundamentais, e até no contexto do sistema regional de proteção de direitos humanos sob a CEDH – «na ordem constitucional portuguesa o apoio de terceiros à morte, mesmo que autodeterminada, não representa um interesse constitucional posi- tivo». A exceção a esta ideia de um dever geral «qualificado» de «proteção e promoção» da vida são os «casos em que uma proibição absoluta da antecipação da morte com apoio de terceiros determinaria a redução da pessoa que pretende morrer, mas não consegue concretizar essa intenção sem ajuda, a um mero objeto de tratamentos verdadeiramente não desejados ou, em alternativa, a sua condenação a um sofrimento sem sentido face ao desfecho inevitável.» Nesses casos – diz-se − «não está em causa uma escolha entre a vida e a morte», mas entre «um processo de morte longo e sofrido» e «uma morte rápida e tranquila». Para além de me parecer que esta posição é essencialmente indefensável – pelas razões que aduzi a respeito da ideia geral de uma ponderação entre a vida como valor objetivo e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade −, não consigo vislumbrar como é que, dadas estas premissas, que aliás se diz consubstanciarem uma «linha de princípio orientadora» e até uma «diretriz», a permissão da antecipação da morte nos casos de «lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico» não é inconstitucional por força da inviolabilidade da vida humana. Com efeito, excluídas as situações de «doença incurável e fatal», decorre da

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