TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

113 acórdão n.º 123/21 7. Se assim é em termos gerais, a solução concreta adotada no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto não deixa de merecer uma objeção constitucional: a exigência de verificação administrativa de uma «situação de sofri- mento intolerável». Creio que este requisito restringe excessivamente o direito ao livre desenvolvimento da personalidade do «doente», desde logo por ser manifestamente inidóneo como meio de tutela da liberdade geral de ação na sua dimensão positiva. Importa distinguir sofrimento de dor. Por ser uma sensação, a dor é seguramente subjetiva, no duplo sentido de ser um evento que ocorre na consciência do sujeito e que é diretamente cognoscível apenas pelo sujeito. Porém, nem por isso deixa de ser passível de algum grau de objetivação – presente nos atuais métodos de diagnóstico e na construção de escalas – e de ser mitigada ou debelada através do tratamento das suas causas ou da administração de anestésicos. Já o sofrimento pressupõe a capacidade de um sujeito valorar a sua existência segundo uma norma que interiorizou. Só por comodidade de expressão se pode falar de «sofrimento físico» ou «sofrimento psicológico» − o sofrimento é por natureza um estado holístico e um fenómeno de ordem existencial; as suas «causas» são necessariamente mediadas pela reflexão e referidas a determinados valores. Daí que a relação entre dor e sofrimento seja contingente: a dor pode ser uma «causa» determinante de sofrimento, mas pode haver dor sem sofrimento – regularmente testemunhada por partu- rientes, desportistas e missionários – e pode haver sofrimento sem dor, nomeadamente «causada» pelo fim de uma relação valiosa, pela morte de uma pessoa querida ou pela dependência total de terceiros. Não impugno que o sofrimento possa ser objeto de uma terapêutica própria – no quadro de uma conceção interdisciplinar de cuidados paliativos −, mas dou por certo que não se trata de algo de tão prosaico como tratar uma dor de dentes ou uma contratura muscular, sintomáticos de causas objetivamente identificáveis e suscetíveis de alívio através da administração de fármacos. Parece-me sobretudo que o sofrimento é uma realidade profun- damente subjetiva, incindível da mundividência pessoal e insuscetível de simples «verificação». Por tudo isto, não creio que o sofrimento possa ser «verificado» ou «falsificado» por terceiros, nomea- damente médicos e comissões administrativas, e ainda menos creio que o possa ser a respetiva «intolerabili- dade». A questão pode ser rigorosamente colocada, do ponto de vista constitucional, nos seguintes termos. Ao impor como condição da antecipação da morte medicamente assistida uma «situação de sofrimento intolerável» verificada através do procedimento administrativo regulado no decreto, o legislador restringe a liberdade geral de ação do «doente», na sua dimensão negativa de liberdade de escolha, presume-se que com a finalidade – a única que se pode reputar legítima – de proteger a sua autodeterminação pessoal, a dimensão positiva da liberdade. Sucede que confiar a uma instância heterónoma a verificação de um estado radical- mente subjetivo é um meio inidóneo e até nocivo de prosseguir essa finalidade – é uma forma insidiosa de atribuir a terceiros a decisão final sobre a razoabilidade do sofrimento relatado pelo «doente», submetendo a existência deste a valorações fundadas numa norma exterior incompatível com a sua autonomia. A desa- dequação é ainda mais evidente – entrando em contradição ostensiva com o fundamento do regime – se atentarmos em que a lei não se basta com a verificação do sofrimento, antes exigindo a intolerabilidade do sofrimento. Em termos práticos, do que se trata é de devolver aos especialistas o poder de julgar se uma pes- soa em determinadas condições, nomeadamente uma doença grave e incurável ou uma lesão definitiva de gravidade extrema, tem boas razões para deixar de viver. Um regime destes gera dois perigos imensos: por um lado, o de que as condições em que se pode antecipar a morte passem a depender mais das mundividências dos profissionais de saúde e das orientações da Comissão de Verificação e Avaliação do que da vontade con- tingente e das conceções de vida dos requerentes; por outro lado, o de que a verificação sucessiva da «situação de sofrimento intolerável» nominalize a liberdade do «doente» revogar o pedido no último momento, aten- dendo ao carácter de aquisição progressiva dos atos que integram o procedimento, conjugado com o facto de o médico ser tomado pelo paciente, o mais das vezes, como uma figura de autoridade. São perigos demasiado graves num regime que procura servir o exercício da liberdade individual a respeito da vida e da morte. Admito que a lei possa ser interpretada, à semelhança do que vem ocorrendo na generalidade dos sistemas que admitem a morte medicamente assistida, de modo a que este requisito seja integralmente sub- jetivado, transfigurando-se na mera exigência protocolar de que o requerente, ao formular o pedido para

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