TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

112 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL do que sobre a sua incapacidade transitória para formar uma decisão ponderada. E este dado da experiência comum é amplamente corroborado pelos estudos que indicam que uma percentagem elevadíssima das pessoas que tenta suicidar-se – cerca de 90% − vem a arrepender-se da sua decisão. Creio ser este o verdadeiro fundamento constitucional da negação de um direito ao suicídio e da incrimi- nação da morte assistida. O legislador presume razoavelmente que a decisão de morrer não é autodeterminada na proporção das suas consequências – irreversíveis e irremediáveis – no desenvolvimento da personalidade do agente. A carência de proteção da dimensão positiva da liberdade de ação é tão grande nestas circunstâncias que torna razoável a restrição mais severa da liberdade negativa – a negação absoluta de um direito a pôr termo à vida e a incriminação geral da colaboração de terceiro na execução da decisão de morrer. Mas não é única solução possível do ponto de vista constitucional. Tratando-se de um juízo de ponderação complexo e contro- verso, parece-me seguro que o legislador democrático não pode deixar de gozar de liberdade de conformação política numa significativa região intermédia entre a proibição do défice de proteção da autonomia pessoal e a proibição do excesso de restrição da liberdade de escolha. Por isso, as ordens jurídicas de outras democracias constitucionais europeias contêm regimes muito variados neste domínio. A solução originária dos artigos 134.º e 135.º do Código Penal, que preveem tipos incriminadores que cobrem todo o fenómeno da morte assistida, é relativamente conservadora, distinguindo-se, quer das ordens jurídicas que permitem a eutanásia ativa e o suicí- dio assistido em determinadas condições, como a holandesa e a belga, quer daquelas em que a ajuda ao suicídio não é um facto punível, sendo mesmo uma prática social tolerada, como a alemã e a suíça. É no uso desta liberdade de conformação política para ponderar as dimensões negativa e positiva da liberdade geral de ação que o legislador vem agora aprovar um regime excecional de morte medicamente assistida. Considera-se que, nas condições previstas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto, há razões fundadas para inverter a presunção que informa a incriminação do homicídio a pedido da vítima e a ajuda ao suicídio – nessas condições, por outras palavras, justifica-se tomar a decisão do indivíduo de pôr termo à vida como expressão da sua autonomia. Em parte, tal deve-se ao facto de o procedimento administrativo instituído para verificar as condições em que a morte assistida é permitida assegurar, numa medida que pela sua onerosidade e morosidade se pode reputar genericamente aceitável, que o pedido é informado, ponderado e definitivo, sendo de salientar a este respeito a exigência de sucessiva reiteração e a proteção da liberdade de revogação. Tudo isto pertence ao domínio estritamente processual do regime, visto que está em causa a formação da decisão individual de morrer; obedece, pois, ao princípio geral de que os requisitos de validade para o exer- cício de um direito deverão ser tanto mais exigentes quanto mais significativas forem as suas consequências no desenvolvimento da personalidade do titular. Porém, exige-se ainda que o requerente padeça de uma «doença incurável e fatal» ou de uma «lesão definitiva de gravidade extrema» e que se encontre, em qualquer dos casos, numa situação de «sofrimento intolerável». O fundamento genérico destas exigências, se bem vejo as coisas, é no essencial o seguinte: se a presunção de irracionalidade da decisão de dispor da vida repousa no reconhecimento de que a vida é a condição empírica absoluta dos demais bens mundanos, que a existência pessoal é radicalmente indeter- minada e que os seres humanos não são omniscientes, há razões fundadas para inverter essa presunção nas situações – aquelas que o legislador procurou isolar com noções qualificadas de «doença» e «lesão» − em que se verifica uma redução dramática da qualidade de vida, um esmagamento das possibilidades existenciais e a irreversibilidade ou definitividade do quadro clínico. É compreensível que para alguns a vida deixe de ter sentido nestas circunstâncias, e esse facto torna a sua vontade de morrer suficientemente inteligível para que a lei, invertendo a presunção geral que informa a incriminação da morte assistida, a tome então como expres- são da autodeterminação pessoal. É esta inteligibilidade da decisão que fundamenta o reconhecimento de um direito a morrer com assistência médica; o legislador entende que nesses casos a proteção da autonomia basta-se com a garantia de que o pedido é informado, ponderado e definitivo, devendo então prevalecer a liberdade de escolha do requerente. Trata-se de uma opção constitucionalmente legítima.

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