TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
111 acórdão n.º 123/21 conciliar-se com o arbítrio de outrem segundo uma lei universal de liberdade.» A coação só pode ser usada para garantir a liberdade negativa; o «reino dos fins» inscreve-se exclusivamente no domínio da consciência. Em segundo lugar, trata-se de reconhecer que os modos próprios de reflexão e comunicação numa sociedade aberta não geram nenhum consenso ético ou religião cívica – nenhuma conceção única de virtude moral, do sentido da existência ou dos mistérios da vida. A pluralidade irremediável de lealdades mundivi- denciais determina que uma ordem de convivência justa só é possível se a autoridade pública invocar razões que merecem o assentimento de todos os cidadãos, no pressuposto de que estes se respeitam mutuamente como sujeitos livres e iguais. «A Constituição – lê-se na célebre declaração de voto de Oliver Wendell Holmes Jr. em Lochner v. New York − é feita para pessoas com visões fundamentalmente diversas (…)». Ora, como a generalidade das conceções éticas – religiosas ou seculares – não satisfaz esta exigência de reciprocidade política e razão pública, a única norma de conduta universal é a que devolve ao indivíduo dotado da capaci- dade para tanto um poder de governo sobre a sua existência, ao livre desenvolvimento da sua personalidade, através da garantia de uma esfera de liberdade negativa compatível com a igual garantia concedida aos demais indivíduos. Todos os direitos fundamentais na tradição do constitucionalismo têm esse sentido profundo: têm-no de modo evidente os direitos de liberdade, que protegem o titular da interferência pública e fundam deveres estatais de proteção contra a interferência de terceiros; mas têm-no ainda os direitos sociais, que inci- dem sobre determinadas condições materiais para o gozo efetivo dos direitos de liberdade. Com o reconhecimento da interioridade e do pluralismo dos valores, a ideia de liberdade positiva não desaparece, mas altera-se profundamente. Deixa de constituir uma norma material que orienta a conduta no sentido de um correto desenvolvimento da personalidade e passa a constituir uma norma processual que se traduz na exigência de que o exercício dos direitos deve satisfazer condições, observar trâmites e revestir forma comensuráveis com os seus efeitos no desenvolvimento da personalidade do agente. Uma das principais razões pelas quais a lei onera de modo muito diverso os mais variados atos e negócios da vida quotidiana – um passeio na via pública, a compra de uma passagem aérea, a aquisição de um imóvel, a constituição de uma associação, a celebração de um testamento – prende-se com a magnitude e a reversibilidade das suas consequências na vida do autor. A oneração de um ato constitui sem dúvida uma restrição da liberdade geral de ação na dimensão negativa de arbítrio individual ou ausência de constrangimento – de agir como muito bem se entender, sem ter de prestar contas a ninguém. Mas pode constituir uma forma de tutela da liberdade geral de ação na dimensão positiva de garantia de autodeterminação pessoal – de formação de uma decisão adequadamente informada, ponderada e firmada. Assim, a liberdade geral de ação compreende duas dimensões distintas e carecidas de concordância prática: o direito de agir sem impedimentos ou obstáculos criados pelo poder público e o direito à proteção das condições de formação de uma decisão autónoma. O primeiro é um direito defensivo, correlativo de um dever estatal de abstenção; o segundo é um direito positivo, correlativo de um dever estatal de prestação. É deste modo – numa tensão permanente mediada pelo princípio da proporcionalidade − que liberdade nega- tiva e positiva coexistem na ordem constitucional das democracias liberais. 6. O exercício negativo do direito à vida tem a singularidade de ser indistinguível de uma declaração de renúncia ao direito, tornada definitiva pela circunstância de ser impossível a sua revogação futura. Tal reclama máxima exigência quanto aos requisitos de validade desse exercício: tendo em conta a natureza absolutamente irreversível e irremediável da decisão, o dever de proteção fundado na dimensão positiva da liberdade geral de ação justifica restrições severas da sua dimensão negativa. O legislador tem de ter uma convicção fundada na ponderação e firmeza da decisão de morrer para poder tomá-la como expressão de autodeterminação pessoal e, nos casos de homicídio a pedido ou ajuda ao suicídio, outorgar validade ao consentimento prestado a terceiro. Ora, esse grau de convicção não se verifica na generalidade das circunstâncias em que alguém deseja pôr termo à vida. A experiência comum diz-nos que a vontade de morrer é por norma irracional – irrefletida, precipitada ou desesperada −, uma vez que a vida é um pressuposto empírico absoluto dos demais bens mundanos, que a existência pessoal é radicalmente indeterminada e que os seres humanos não são omniscientes. Na esmagadora maioria dos casos, a tentativa de suicídio diz menos sobre a ponderação que o sujeito faz sobre a sua existência
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