TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
110 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL É-se tão mais livre, neste sentido, quanto menor a resistência externa – e sobretudo de terceiros, sejam eles parti- culares ou entes públicos – à ação individual. Esta liberdade negativa é anómica, na medida em que não obedece a nenhuma norma objetiva, resumindo-se ao poder arbitrário do agente sobre um determinado objeto – a vida, o corpo, uma coisa, a imagem, a intimidade, a comunicação, a saúde, entre muitos outros. A liberdade no sentido positivo – a segunda grande conceção – desenvolve-se a partir da interiorização da negação paradigmática da liberdade: a escravatura. O escravo está na dependência absoluta da vontade de terceiro, o seu proprietário; por isso, não tem nenhum direito a ser livre no sentido negativo do termo – goza da liberdade negativa concedida pelo arbítrio do seu amo. De forma aparentemente paradoxal, Epicuro afirmou que a liberdade se encontra apenas na submissão total do indivíduo ao saber – um estado compatí- vel com a condição social dos escravos que frequentavam a sua escola. E Platão pôs Sócrates a defender em vários dos seus diálogos que os tiranos e demagogos, considerados pelos seus interlocutores como os mais poderosos, são os que menos podem e os mais infelizes. Assim é – explica − porque não fazem o que real- mente querem, antes o que as suas paixões, inclinações, apetites e tentações os compelem inexoravelmente a fazer. O verdadeiro dependente, neste sentido, é o indivíduo incapaz de exercer autocontrolo, autodomínio, autodisciplina – aquele, em suma, que não se governando pela razão e gozando da maior licença para agir, é escravo dos seus impulsos. A liberdade positiva é normativa, na medida em que se consubstancia na vivência de acordo com a regularidade racional, que pode resultar tanto da aquisição individual da sabedoria, como da sujeição a um governo de virtuosos. Nas suas versões extremadas, liberdade negativa e positiva não são apenas diferentes – são perfeitamente antagónicas. Entre a liberdade negativa de um Hobbes, que «significa propriamente a ausência de (…) impe- dimentos externos ao movimento, e aplica-se tanto a criaturas irracionais como irracionais», e a liberdade positiva de um Rousseau, segundo o qual «quem quer que recuse obedecer à vontade geral a isso será coagido por todo o corpo: o que significa apenas que será forçado a ser livre», não há reconciliação possível. No pri- meiro sentido, os seres humanos são livres na medida em que possam comportar-se como uma pedra que rola pela ladeira abaixo sem obstáculos; é a submissão total do indivíduo, do ponto de vista da liberdade positiva. No segundo sentido, os seres humanos são livres na medida em que observem uma lei racionalmente justi- ficada, se necessário imposta pela coletividade organizada; é o triunfo do despotismo, na perspetiva da liber- dade negativa. Ora, a democracia constitucional é um modo de vida coletivo que se baseia na prioridade da liberdade negativa – nos compromissos fundamentais de que a liberdade e a força se excluem mutuamente; de que toda a restrição da liberdade de escolha carece de um fundamento legítimo; que em caso de dúvida sobre o alcance das leis se presume a favor da liberdade de ação; e que todo o indivíduo é senhor de uma esfera de decisão insuscetível de ingerência pela autoridade pública e em que pode agir sem prestar contas a ninguém. Precisamente aqui reside o ethos liberal dos regimes democráticos contemporâneos. 5. A liberdade positiva não deixa ainda assim de ter um lugar relevante na nossa ordem constitucional, numa versão compatível com os argumentos da interioridade e do pluralismo. Em primeiro lugar, trata-se de conceder que o valor ético ou a virtude moral não podem impor-se pela força. A liberdade que se realiza através da obediência a uma norma de conduta ou ao reconhecimento de uma necessidade objetiva implica a liberdade de escolha do sujeito – realiza-se apenas como expressão de autodeter- minação pessoal. Por isso, embora a ordem constitucional de uma democracia liberal procure a sua legitimidade no consentimento dos destinatários, como sujeitos livres e iguais, não usa da força para garantir a liberdade positiva dos indivíduos que submete, antes a liberdade negativa dos indivíduos que seriam por aqueles de outro modo submetidos; a obrigação não é executada para libertar o devedor do mal, mas para tutelar o direito do credor. Ninguém pode ser forçado a ser livre no sentido positivo do cumprimento do que é devido: essa liber- dade não é realizável de outra forma que não a autonomia, a submissão voluntária do sujeito a uma norma de conduta que interiorizou. O direito – escreve Kant, o filósofo que mais longe levou a ideia de liberdade como obediência a um imperativo categórico – assegura as «condições sob as quais o arbítrio de cada um pode
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