TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

109 acórdão n.º 123/21 valor da vida plenamente formada como princípio geral, precisamente aquele princípio que sempre orientou as políticas eugénicas, homicidas e genocidas dos regimes que se caracterizaram pela negação da dignidade da pessoa humana – pela noção, quer isto dizer, de que a dignidade não é do ser humano, sem declinações ou reservas, mas daqueles que exibem uma origem, pertença ou excelência dignificante. Pelo contrário, no modo de convivência política a que chamamos democracia constitucional, a vida humana não tem mais ou menos valor em razão das condições em que é vivida, do carácter de quem a vive ou da sua duração expectá- vel. Por outro lado, se fosse o peso da liberdade a aumentar nas circunstâncias em que a lei vem a admitir a morte medicamente assistida, o legislador arrogar-se-ia o direito de sindicar, julgar e discriminar as convic- ções existenciais e a identidade pessoal dos cidadãos, fazendo depender o reconhecimento das suas decisões, não do respeito que lhe merece o exercício da liberdade, mas do mérito que atribui a determinadas motiva- ções e projetos individuais. Desse modo, ao estabelecer um regime de «eutanásia com indicações» − condi- cionada a certas causas objetivas do foro somático −, o legislador não estaria a respeitar a liberdade de ação do indivíduo, mas a assumir uma função dirigente no desenvolvimento da sua personalidade. É evidente que isto seria contraditório com o princípio liberal em que repousa o regime da morte medicamente assistida. 4. A terceira resposta possível – aquela que subscrevo – parte de uma premissa diversa: a disponibilidade de princípio da vida como bem jurídico. A vida é juridicamente disponível mesmo que se conceda a ideia – eviden- temente controvertida numa sociedade pluralista – de que se trata de um valor incondicional, que ao destruir a sua vida o agente está a desrespeitar a sua essência moral ou a violar o dever ético de conservação do bem. Assim é porque não é possível coagir ninguém a respeitar a sua dignidade ou a comportar-se eticamente: os valores interiores − como a bondade, a retidão, o respeito ou a caridade – não podem, por natureza, ser realizados através da força, visto que esta atua sobre o agente como mero objeto, simples meio para realizar um estado de coisas exterior considerado desejável. É uma contradição nos próprios termos tratar alguém como simples meio em razão da sua condição de fim em si mesmo. Ao coagir o devedor a cumprir a obrigação contratual, o empregador a não despedir sem justa causa ou o lesante a indemnizar os prejuízos que causou, a autoridade pública garante os direitos do credor, do trabalhador ou do lesado. Estes podem ser garantidos pela força. Mas a força não pode ser usada para garantir a dignidade do seu objeto: ao negar a liberdade do agente, nega a condi- ção sine qua non do seu êxito. Isto vale, quer para a coação no sentido mais estrito – a execução forçada −, quer para sanções e outras formas mais ou menos subtis de restrição da liberdade de escolha, como a proibição do auxílio prestado por terceiros. Por isso, numa ordem constitucional baseada na dignidade da pessoa humana, todos os direitos fundamentais se têm de articular com o direito mais geral e radical ao livre desenvolvimento da personalidade. A vida é objeto de um verdadeiro direito de liberdade. Pode pensar-se que este argumento prova de mais. A lei não manda punir a tentativa de suicídio, nem dela se pode retirar que o suicídio seja um ato ilícito. Só que também não o concebe como um direito subjetivo. O suicídio é permitido no sentido amplo, trivial e tautológico de que não é proibido. É legítimo que uma pessoa tente impedir outrem de cometer suicídio e suponho que seja pacífico que um agente da autoridade tenha o dever de o fazer. Mas se a vida é um bem disponível, se é objeto de um direito de liber- dade, pode perguntar-se se o legislador não estará obrigado a consagrar um direito ao suicídio e a admitir o consentimento como causa de justificação nos crimes contra a vida, com a consequência inevitável de que os tipos incriminadores constantes dos artigos 134.º e 135.º do Código Penal se devam ter por inconstitucio- nais. Pela mesma ordem de razões, a intervenção de terceiro que dificulte o suicídio deveria ser caracterizada como conduta ilícita e a autoridade pública, confrontada com uma tentativa de suicídio, deveria ter-se por vinculada a um simples dever de abstenção. São consequências abomináveis. Porém, este raciocínio baseia-se numa conceção redutora de liberdade. A liberdade geral de ação com- preendida no direito ao livre desenvolvimento da personalidade não se esgota na dimensão negativa. Na cultura moral, política e jurídica ocidental o conceito de liberdade admite duas interpretações ou conceções distintas. A liberdade no sentido negativo do termo é a liberdade de escolha, o arbítrio individual, a ação desimpedida, a ausência de obstáculos: liberdade é o indivíduo fazer o que muito bem entender, sem prestar contas a ninguém.

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