TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

106 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL fez uma lei que, de forma equilibrada e muito cuidadosa, respeita tanto quem quer viver como a natureza o ditar até ao último dia, como quem quer escolher o momento da sua morte com a assistência de terceiros em circunstâncias delimitadas pelo quadro constitucional. A lei procurou conciliar o mais possível as diversas visões da sociedade sobre o tema e estabelecer todas as cautelas, fazendo tudo o que estava ao seu alcance para evitar, por exemplo, o perigo das chamadas “rampas deslizantes”. A sua preocupação bem visível foi limitar a morte assistida a situações muito excecionais (e invariavelmente assentes na vontade livre, esclarecida e infor- mada do paciente, com todo um procedimento garantístico muito exigente, a garantia de acesso a cuidados paliativos, a objeção de consciência dos profissionais de saúde, etc.). Uma última referência, a propósito do argumento relativo à dimensão social – e não meramente individual – do suicídio, muito esgrimido e particularmente enfatizado por Gustavo Zagrebelsky: “dever do Estado não é o contrário: dar esperança a todos? O primeiro direito de cada pessoa é poder viver uma vida com sentido, cor- respondendo à sociedade o dever de criar as condições. […] Uma coisa é o suicídio como facto individual; outra coisa é o suicídio socialmente organizado A sociedade, com as suas estruturas, tem o dever de cuidar, se possível; se não for possível, tem, pelo menos, o dever de aliviar o sofrimento”. O problema maior desta argumentação é que não vivemos nessa sociedade perfeita ou, pelo menos, mais próxima daquela sociedade mais justa, mais fraterna e mais livre de que fala o preâmbulo da nossa Constituição. Se temos todos, como pessoas e cidadãos, um dever indeclinável de lutar por ela, a verdade é que ela (ainda) não existe – e aí a necessidade da nossa solida- riedade e da nossa humanidade, enquanto comunidade, para com aqueles que, em circunstâncias extremamente difíceis, que ninguém pode julgar, optam por tomar a decisão dramática de pedir para lhes ser dada a morte. É verdade que todas as vidas são dignas – aí todos estamos de acordo, pelo que não é esse o problema (e, aliás, como salienta Ronald Dworkin, “a dignidade – que significa respeitar o valor inerente às nossas próprias vidas – constitui o cerne de ambos os argumentos”, pró e contra a eutanásia), mas também é verdade que não há palia- tivos para tudo e há sofrimentos a que nada consegue pôr cobro. O sofrimento, mesmo atroz, pode aguentar-se quando há esperança, mas o sofrimento atroz, quando não há esperança, não faz sentido se o próprio já não vir nele nenhum sentido. O que torna o sofrimento insuportável não é a doença ou a lesão de que a pessoa sofre, é a sua incapacidade em adaptar-se e assim não conseguir alívio, é a perspetiva de viver em constante sofrimento sem qualquer expectativa de alívio. É por isso que entendo estar aqui em causa, sobretudo, esse imperativo de humanidade, de não tratar como criminoso quem ajuda alguém, “em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal” a antecipar a sua morte, movido apenas pela compaixão face ao seu pedido consciente e informado, repetido e inequívoco. Com esta lei, cada um continua a ter o direito a sofrer o seu próprio sofrimento e a morrer a sua própria morte, mas a criminalização deixará de poder ser usada para impor o sofrimento a outros, nos limitadíssimos casos em que se encontra previsto que o homicídio a pedido da vítima e a ajuda ao suicídio deixam de ser crime. Também por estas razões (a acrescer às que constam da declaração conjunta que subscrevi) divergi do Acórdão e entendo que o juízo deste Tribunal deveria ter sido de não inconstitucionalidade. – José João Abrantes. DECLARAÇÃO DE VOTO Vencido quanto ao fundamento da decisão. 1. A morte medicamente assistida regulada no Decreto n.º 109/XIV constitui uma exceção aos regimes gerais da incriminação do homicídio a pedido da vítima e da ajuda ao suicídio, constantes do n.º 1 – respe- tivamente − dos artigos 134.º e 135.º (segunda parte) do Código Penal. Desde que praticada nas condições e nos termos previstos no decreto, a conduta em causa deixa, não apenas de ser «punível», como se afirma no artigo 1.º, como em rigor passa a ser lícita, permitida pela lei − em boa verdade, passa a ser protegida pela lei, uma vez que o cumprimento de todas as etapas do procedimento de verificação confere ao «doente» o direito de morrer com assistência médica. Ora, sempre que o legislador pune uma conduta, restringe severamente

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