TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

105 acórdão n.º 123/21 O problema – que o Acórdão não enfrenta explicitamente, embora devesse fazê-lo – não é, pois, o da deter- minabilidade do conceito de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”. O conceito é determinável, sem dificuldades inultrapassáveis, no específico contexto institucional e procedimental em que deve operar. A questão é que a prefiguração dessa mesma determinação leva a concluir que o legislador quis incluir no leque de possibilidades de acesso a uma morte medicamente assistida casos em que, por não estar em causa uma lesão de “natureza fatal, não se vê como possa estar (...) em causa a antecipação da morte, uma vez que esta pode não ocorrer em consequência da referida lesão”. Assim, o que fundamenta a decisão de incons- titucionalidade não é, verdadeiramente, um problema de indeterminabilidade. É um problema que radica na amplitude do âmbito subjetivo das situações efetivamente abrangidas pela norma fiscalizada. A maioria do Tribunal entende que ela é de tal modo grande que isso a situa fora do espaço de conformidade constitucional. No entanto, se é esse o problema, deveria ter sido especificamente analisado. Tendo em conta tudo o que se afirmou, cremos que se aplica, por maioria de razão, ao requisito de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico” o que se disse no Acórdão quanto ao requisito de “sofrimento intolerável”; ou seja, que “apesar de indeterminado, o conceito em apreço não é inde- terminável, mas antes determinável. Acresce que a sua abertura se mostra adequada ao contexto clínico em que terá de ser aplicado por médicos. Estas duas razões justificam suficientemente o grau de indeterminação em causa, não permitindo, no domínio particular da antecipação da morte medicamente assistida, a conclusão de que aquele grau contrarie as exigências de densidade normativa resultantes da Constituição”. O que será mais desejável, até por quem mais receia as denominadas “rampas deslizantes”? “Amarrar” o intérprete a noções estreitas e sempre discutíveis (pois essa é a indeclinável natureza do método cientí- fico, permanentemente em busca da confirmação/infirmação do conhecimento tido como adquirido) ou proporcionar ao aplicador uma maior fecundidade heurística na apreciação das concretas situações da vida, associada à garantia que a necessidade de fundamentação empresta ao juízo? – Mariana Canotilho – José João Abrantes – Assunção Raimundo – Fernando Vaz Ventura. DECLARAÇÃO DE VOTO Tendo subscrito a declaração de voto feita em conjunto com os Conselheiros Mariana Canotilho , Assun- ção Raimundo e Fernando Vaz Ventura , onde se enunciam as razões fundamentais por que divergimos do Acórdão, em termos com que me identifico por inteiro, adito agora esta declaração individual, não contradi- tória com aquela, antes na mesma lógica, de algum modo complementando-a com algo que julgo importante dizer sobre a lei cuja fiscalização foi pedida a este Tribunal. A conclusão principal da decisão votada é – reafirmo aqui a nossa declaração conjunta – a de que, em abstrato, o artigo 24.º, n.º 1, da CRP não impede o legislador “de introduzir na ordem jurídica causas de jus- tificação atendíveis em sede de auxílio ao suicídio ou de homicídio a pedido da vítima”. A Constituição outor- ga-lhe uma margem de conformação nesta matéria, para poder encontrar soluções que realizem a necessária concordância prática entre direitos fundamentais e valores jurídico-constitucionais em tensão. De facto, há que reconhecer, sem que tal implique qualquer diminuição da importância ou do sentido ético, filosófico, político, social e jurídico da existência humana, que a absolutização da defesa da vida pelo Estado, contra a vontade do seu titular é, hoje, muito dificilmente compaginável com as exigências jurídico-constitucionais decorrentes dos direitos à autonomia e autodeterminação individuais. Tal como escrevem Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, numa anotação ao artigo 24.º, a circunstância de o direito à vida ser condição sine qua non de todos os restantes direitos não implica necessariamente a sua “permanente superioridade axiológica sobre os demais direitos”: apenas a vida compatível com a liberdade é objeto de pleno reconhecimento constitucional. Dentro dessa margem de conformação, entendo que a Assembleia da República, por uma maioria muito expressiva, e cumprindo o que entendeu ser um imperativo de humanidade (creio que os trabalhos preparatórios, v. g. , os debates parlamentares, demonstram a importância desta ideia para a mens legislatoris ),

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