TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
104 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL seja, não há nenhum bem jurídico constitucionalmente protegido que a CRP entenda que deve necessaria- mente ser protegido através da legislação penal. Esta, configurando uma solução de ultima ratio , deve ser mobilizada sempre que o legislador entenda que não existe outra maneira de proteger adequadamente o bem ou direito em causa. Mas não tem que o ser, por imposição do legislador constituinte. Contudo, a verdade é que o legislador português entendeu manter a criminalização do auxílio ao suicí- dio e do homicídio a pedido da vítima, condutas tipificadas e punidas nos artigos 134.º e 135.º do Código Penal, e para as quais se prevê idêntica moldura penal, revelando terem, na ótica legislativa, idêntico desvalor. Trata-se, como o Acórdão bem reconhece, de crimes de perigo abstrato, justificados pela necessidade de pro- teger a vida contra decisões apressadas, precipitadas ou condicionadas. Mas, também, de tipos privilegiados face ao crime (central) de homicídio. Seguindo a reflexão de Costa Andrade ali citada, entendeu o legislador haver situações concretas em que – face a uma perda irreversível de sentido na continuação da vida, motivada pela proximidade incontornável da morte ou pelo caráter incontrolável e insuportável do sofrimento supor- tado – deve prevalecer o exercício da autodeterminação no sentido de pôr termo à vida, por se afigurar, no sentir comunitário, como “objetivamente razoável”. Situamo-nos, pois, do ponto de vista penal, no âmbito da criação de uma causa de justificação, complexa, que exclui a ilicitude de tais condutas (e não a culpa do agente, sendo desajustado o paralelo com a figura do estado de necessidade desculpante, acolhida no artigo 35.º do Código Penal, que se procura estabelecer no Acórdão), em circunstâncias estritas e pré-determinadas. Neste quadro, – e após esclarecer que a norma em causa deve ser fiscalizada “por referência aos parâmetros constitucionais aplicáveis às normas disciplinadoras da atividade restritiva ou reguladora de direitos fundamen- tais”, designadamente “o princípio da determinabilidade das leis, enquanto corolário do princípio do Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 165.º, n.º 1, alínea b) , da Constituição”, parâmetro com o qual concordamos – o Acórdão dedica-se a examinar a determinabilidade dos dois segmentos normativos identificados como problemáticos pelo recorrente (e só esses), concluindo pela inconstitucionalidade, por violação do mencionado princípio da determinabilidade, da referên- cia a “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”. Entende a maioria que se impo- ria, sem qualquer dúvida, ao legislador, para manter as suas opções num espaço de conformidade constitucional “encontrar uma formulação alternativa, que se traduzisse numa maior densificação do elemento normativo que se pretende consagrar enquanto pressuposto da não punição”, adiantando mesmo que aquele “poderia ter mobi- lizado outros conceitos, muito mais comuns na prática (médica ou jurídica), que, sem perder plasticidade, seriam prontamente apreensíveis quando associados ao pressuposto relativo ao sofrimento intolerável”. Ora, a questão que aqui se coloca não é se o legislador poderia (ou deveria) ter feito diferente, ou melhor. Como nem todo o mau direito é direito contrário à Constituição, e como o legislador não estava, aqui, no nosso entender, obrigado a reme- ter a conceitos mais comuns na prática médica ou jurídica, a única questão a que o Tribunal deve responder é se o conceito que o legislador democrático efetivamente mobilizou corresponde aos standards mínimos de determi- nabilidade aceites como conformes à CRP, no âmbito das causas de justificação em matéria penal. Basta, porém, abrir o Código Penal para encontrarmos, em domínios paralelos, conceitos igualmente indeterminados que não mereceram, até hoje, censura, por se entender que eles são determináveis, na prática, no quadro de um processo de diálogo entre médico e paciente, análogo ao que aqui está em causa. Vejam-se, a título de exemplo, as alíneas a) , b) e c) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, nas quais se preveem situações não punibilidade da interrup- ção da gravidez efetuada por médico, com o consentimento da mulher grávida, com recurso a conceitos como “grave e irreversível/duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida” e “grave doença ou malformação congénita”. A utilização destes conceitos assume tanto mais relevância quando também neste caso, e à semelhança da morte medicamente assistida, se trata não só de descriminalizar, em certas condi- ções, certas condutas, mas “de as regular – e, assim, de as legalizar – no quadro (e apenas no quadro) de um pro- cedimento administrativo autorizativo e de execução que o próprio Estado institui e regula em todas as suas fases e com intervenção (não apenas, mas sempre) de entidades de natureza pública”. Não se vê, pois, que o segmento normativo questionado se afaste, irremediavelmente, deste standard , ou que se coloquem, quanto a ele, quaisquer outras objeções incontornáveis atinentes ao princípio da determinabilidade.
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