TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021
103 acórdão n.º 123/21 que “as pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida, desde que devidamente informadas sobre as consequências previsíveis dessa opção pelo médico responsável e pela equipa multidisciplinar que as acom- panham, têm direito a recusar, nos termos da lei, o suporte artificial das funções vitais e a recusar a prestação de tratamentos não proporcionais nem adequados ao seu estado clínico e tratamentos, de qualquer natureza”. Estas disposições normativas são tributárias de uma conceção que, atribuindo um relevo central ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, justifica que hoje se tenham por legítimas as recusas de tratamento, em quase todas as circunstâncias, sem que a pessoa tenha sequer uma obrigação de fundamentação da sua decisão. Reconhece-se, pois, a cada um, o direito de decidir sobre a sua vida e a sua morte, exigindo respeito pela sua dignidade em ambos os pro- cessos (já que de processos se trata, e não de momentos), de acordo com as suas próprias valorações éticas, morais e/ou religiosas, a sua conceção do que é uma boa vida, que não pode deixar de ser diversificada, numa sociedade complexa e plural. O consentimento compreendido nestes termos implica, pois, uma disponibi- lidade de cada um sobre si mesmo, sobre o seu corpo, que o acompanha na vida e se assume, igualmente, como regra fundamental da morte. Além disso, a ideia de proporcionalidade entre as intervenções médicas para prolongar a vida e a qualidade de vida da pessoa prefigura-se, também, como princípio geral de atuação nestas matérias, limitando a atividade terapêutica. É certo que a problemática em causa no presente processo vai um passo além. Contudo, a verdade é que uma consideração dogmaticamente coerente da densificação do direito ao livre desenvolvimento da perso- nalidade ( ergo , à autodeterminação) que resulta do que foi dito conduz a que exigências jusfundamentais e até de igualdade exijam o reconhecimento de um amplo espaço de conformação para o legislador, no sentido de regular o fim da vida. De facto, se nas situações em que uma pessoa depende de apoios externos para sobreviver pode fazê-los cessar sem ter, sequer, que se explicar, o que justifica que alguém que se encontre em circunstâncias de idêntico (e extremo) sofrimento, mas tenha o infortúnio de sobreviver naturalmente, não o possa fazer? Há (ou deve haver) uma diferença inultrapassável, em situações determinadas, entre deixar morrer e ajudar a morrer? A resposta – e a linha divisória – não deve caber senão ao legislador democrático. S. Rodotà (in La Vita e le Regole, 1.ª edição online , G. Feltrinelli Editore, Milano, 2018), considerando a transformação do auxílio ao suicídio ou do homicídio a pedido da vítima num facto social (questão a que é dada grande relevância no Acórdão) fala-nos da redescoberta “de uma condição humana e de uma sensibilidade difusa e profunda, de uma empatia entre o morrente e as pessoas que o acompanham no tempo extremo da vida, com a assunção da responsabilidade de tornar possível a morte, ditada não pela piedade, mas por afeto. A condição humana e a partilha de um destino encontram aqui uma das suas manifestações mais intensas”. Neste sentido, alerta-se para o facto de as figuras do suicídio e do homicídio se revelarem manifestamente desadequa- das, neste plano, já que se trata de situações existenciais, éticas e jurídicas totalmente distintas do que aqui se trata – que é das condições extremas de quem pede uma morte que vê como digna e do exercício de autode- terminação e autonomia no final de um percurso vital. É nestes momentos difíceis, em que as regras jurídicas encontram a vida, que o direito cumpre o seu papel racionalizador, equalizador e garantístico (designadamente, estabelecendo firmes e rigorosas garantias procedimentais de expressão e verificação da vontade). No entanto, a condição das pessoas em processo de fim de vida deve ser “tomada em consideração na sua inteireza e comple- xidade, sem que no seu interior se admitam distinções que alterem a igualdade de cada um diante da morte. A dimensão constitucional conjuga-se com a dimensão existencial, suportando-a” (S. Rodotà, cit.). 4. O Acórdão estabelece um standard de determinabilidade, em sede de causas de justificação, no plano penal, divergente do até aqui aceite como constitucionalmente conforme. Por último, o Acórdão estabelece, no nosso entender, um standard de determinabilidade, em sede de legislação penal que se afigura não só divergente do que até aqui tem sido aceite como constitucionalmente conforme, como, ainda, potencialmente problemático. Partimos, nesta matéria, de uma premissa fundamental, até aqui sempre afirmada pelo Tribunal, em inteira sintonia com a doutrina: a Constituição não impõe obrigações constitucionais de criminalização. Ou
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