TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

102 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL à luz da Lei Fundamental, ser exercida no quadro da mais absoluta solidão. Por isso, impunha-se a este Tribunal ter afrontado este problema central e, com coerência dogmática, ter retirado as devidas conclusões acerca da questão difícil que tem em mãos. Mesmo que se exclua a emergência, no nosso ordenamento jurídico, do direito fundamental a uma morte autodeterminada, subsiste a questão de saber até que ponto é lícito ao legislador reco- nhecer prevalência crescente ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade em face de um direito à vida que é, antes de mais um direito subjetivo fundamental. Assim, se é indesmentível que “a interferência do terceiro converte o facto num facto pertinente ao sistema social, estando como tal, exposto aos seus códigos e valorações” (vide Costa Andrade, cit. no Acórdão), isso não implica que os mesmos códigos e valorações do sistema social permaneçam cristalizados, presos numa espécie de cápsula do tempo, imunes a qualquer evolução e vento de mudança, impedindo soluções que viabilizem, em certas circunstâncias, a morte medicamente assistida; soluções estas que se conformam com o quadro constitucional em vigor, justamente porque fundadas numa certa con- ceção de equilíbrio hodierno entre direitos em tensão. Ora, se a esta mesma conclusão chega o Acórdão – a de que “a proteção absoluta e sem exceções da vida humana não permite dar uma resposta satisfatória, pois tende a impor um sacrifício da autonomia individual contrário à dignidade da pessoa que sofre, convertendo o seu direito a viver num dever de cumprimento penoso” – a verdade é que o faz a partir de uma conceção da dimensão objetiva do bem vida que quase a absolutiza. Admitindo o se (a possibilidade de morte medicamente assistida, nas suas várias modalidades), esta decisão olha o como com indisfarçável desconfiança, reduzindo-o às situações em que “não está em causa uma escolha entre a vida e a morte, mas, mais rigorosamente, a possibilitação da esco- lha entre diferentes modos de morrer: nomeadamente, um processo de morte longo e sofrido versus uma morte rápida e tranquila”. Um tal entendimento, levado às últimas consequências, excluiria, a priori, a constituciona- lidade de muitas das situações hipotéticas para as quais o legislador democrático claramente quis, agora, abrir a possibilidade de morte medicamente assistida: desde logo, todas aquelas em que não se trate de escolher apenas um processo de morte, mas de renunciar a uma vida que se projeta como não plena, e em sofrimento extremo, ainda que a morte não esteja num horizonte próximo. Por esta razão, reiteramos que o Acórdão parte de uma compreensão errónea, e quase absolutizada, da norma do artigo 24.º, n.º 1, da CRP. Assim – é importante dizê-lo com clareza, dado o percurso argumentativo percorrido, que parte desta quase absolutização do valor objetivo da vida –, a discussão sobre a amplitude da possibilidade de resolução, pelo legislador democraticamente legitimado, das situações de conflito entre a sacralidade da e a qualidade de vida, em favor de um maior espaço de autonomia da pessoa não foi, verdadeiramente, travada, e não pode ser considerada fechada. 3. O Acórdão ignora a relevância do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (n.º 1 do artigo 26.º da CRP), e a sua densificação no quadro das questões especificamente em causa. No que respeita à densificação da norma do artigo 26.º, n.º 1, da CRP, o Acórdão abstém-se de considerar a relevância e a especificidade do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, à autode- terminação e à liberdade, bem como as exigências que decorrem da ideia de consentimento, em situações de doença ou lesão. Ora, a verdade é que, quer no plano da ordem jurídica internacional, quer no plano da ordem interna, a relevância da vontade e do consentimento em todas as matérias relacionadas com a disposição do corpo tem vindo a crescer. Recorde-se o artigo 5.º da Convenção de Oviedo (Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina: Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, de 4 de abril de 1997), nos termos da qual “qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efetuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido. Esta pessoa deve receber previamente a informação adequada quanto ao objetivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e riscos. A pessoa em questão pode, em qualquer momento, revogar livremente o seu consentimento”. No plano interno, vejam-se a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos (Lei n.º 52/2012, de 5 de setembro) e a Lei dos Direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida (Lei n.º 31/2018, de 18 de julho). A norma do n.º 3 do artigo 5.º desta última lei prevê expressamente

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