TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

101 acórdão n.º 123/21 direito à intimidade da vida privada e autonomia pessoal” (veja-se, neste sentido, o acórdão do TEDH Lam- bert v. França , de 5 de junho de 2015). 2.2. Ora, é precisamente à luz das ideias de concordância prática entre direitos fundamentais em tensão, em termos análogos àqueles que motivaram as decisões dos tribunais constitucionais congéneres do nosso, e da margem de conformação do legislador democrático que entendemos que o juízo geral, no presente pro- cesso, deve ser de não inconstitucionalidade. O mesmo parece, aliás, entender o próprio requerente, tendo em atenção a delimitação que temos como correta do pedido. Assim, no plano da dogmática constitucional, e situando-nos na análise do ordenamento jurídico- -constitucional nacional, cabe assinalar, antes de mais, que não existe, relativamente a esta questão, qualquer caderno de encargos constitucional; ou seja, a Constituição não impõe aqui, ao contrário de outras matérias, um programa concreto, deixando – de maneira propositada – um amplíssimo espaço de conformação ao legislador ordinário. Este facto é, aliás, facilmente compreensível, por razões históricas, sociais e políticas. Nestes termos, a Constituição admite que o legislador democrático possa ser chamado a dirimir a tensão que emerge, em determinadas situações, entre vida biológica e vida biográfica (ou, para quem assim o pre- fira, entre a sacralidade da e a qualidade de vida), encontrando soluções que salvaguardem a dignidade da pessoa humana e todos os direitos e valores jurídico-constitucionais em conflito, e que façam sentido numa sociedade secularizada e plural (neste sentido, veja-se A. Schillacci, “Dalla Consulta a Campo Marzio (e ritorno?): il difficile seguito dell’ord. n. 207/2018”, in S. Cacace, A. Conti e P. Delbon (a cura di), La Volontà e la Scienza , G. Giappichelli Editore, Torino, 2019). Sobre o artigo 24.º da CRP, importa destacar que este protege a vida humana, em todo o momento e em todas as circunstâncias. A vida – uma vida digna – é, pois, tutelada em todas as fases do percurso humano, desde as menos autónomas (como a infância ou a terceira idade) às de maior autonomia; em estado saudável ou de doença; no quadro da integridade plena de faculdades físicas, motoras ou intelectuais ou de deficiência, leve ou profunda, congénita ou superveniente. Nesse sentido, a norma protege os seres humanos que não têm, por diversas razões, plena capacidade de autodeterminação, como os menores, os incapazes, as pessoas com anomalia psíquica, ou as que se encontram em estado vegetativo. Protege igualmente, e como é evidente, a pessoa com absoluta autonomia e liberdade de autodeterminação. Essa proteção impõe-se, desde logo, ao Estado, em relação ao qual impendem importantes deveres de proteção e tutela. Tendo, aliás, em atenção a génese da norma constitucional, e a que era a memória então recente dos atentados contra a vida por parte do Estado Novo, a ideia fundante do artigo 24.º, n.º 1, da Constituição era simples: o Estado não mata, por razão alguma, pessoas que querem viver. No entanto, nada disto tem como consequência necessária que esta proteção tenha de ter sempre a mesma extensão e intensidade e, ainda, que a consideração daquela que é, hoje, a densificação de outros direitos fundamentais – designadamente, do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, nas dimen- sões de liberdade e autodeterminação – e das suas consequências em planos específicos, como o dos tra- tamentos médicos e dos processos de fim de vida, não permita [ainda que também não obrigue a] que o legislador crie soluções jurídico-normativas e práticas para viabilizar aquele que entende ser o modo mais logrado de concordância prática entre os valores em conflito. A ideia, expressa no Acórdão, segundo a qual se estará, no presente caso, num plano muito distinto, e alheio a esta tensão entre direitos fundamentais, porquanto “não está em causa a conduta isolada de alguém que quer pôr termo à própria vida, mas a assistência de profissionais de saúde, num quadro de atuação regulado e controlado pelo Estado, à antecipação da morte de uma pessoa a pedido desta” constitui um artifício, por certo engenhoso, mas infundado, para fugir à questão fundamental que a problemática do auxílio ao suicídio e do homicídio a pedido do paciente em situações de sofrimento intolerável convoca: a da definição de um espaço de equilíbrio entre o direito à vida (artigo 24.º, n.º 1, da CRP) e o direito ao livre desenvolvimento da personali- dade, expressão de uma irrenunciável autodeterminação pessoal e da autonomia da vontade (artigo 26.º, n.º 1, da CRP). Rejeitamos a ideia de que essa autonomia, que configura um verdadeiro direito fundamental, só possa,

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