TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 109.º Volume \ 2020

651 acórdão n.º 770/20 de um direito, fundado na liberdade de se não incriminar, de dispor do que anteriormente declarou, direito este que pressupõe a leitura ou reprodução em audiência das declarações anteriormente prestadas. Não podemos acompanhar este entendimento. Em primeiro lugar, a liberdade de o arguido se não incriminar não implica nenhum direito a dispor do que declarou – incompatível com a valoração, em quaisquer circunstâncias, das declarações por si prestadas antes do julgamento −, mas de um direito a contraditar a prova constituída por essas declarações. Com efeito, o arguido não pode exigir o apagamento do que disse, num exercício esclarecido de liberdade e rodeado de todas as garantias; o que pode, se assim o entender, é discutir o valor probatório das declarações que prestou. Em segundo lugar, admitindo-se – como se admite no Acórdão, justamente a propósito das declarações livremente prestadas pelo arguido – que os direitos ao silêncio e à não autoincriminação são renunciáveis, não se vê como o próprio direito a que as declarações sejam lidas ou reproduzidas em audiência, que se entende decorrer daquele, não seja igualmente renunciável. Assim, a faculdade de o arguido requerer a lei- tura ou reprodução das declarações – reconhecida na decisão recorrida – cumpre plenamente as exigências inerentes ao seu estatuto constitucional, sem que se justifique nenhuma imposição do estado de coisas cor- respondente ao seu uso efetivo. Em terceiro lugar, a conclusão segundo a qual a admissibilidade constitucional da valoração das declara- ções como meio de prova reclama a obrigatoriedade da sua leitura ou reprodução em audiência de julgamento contradiz a premissa maior do argumento, qual seja a de que o arguido deve ser tratado como sujeito e não objeto do processo penal, um sujeito capaz de se autodeterminar através de decisões informadas e rodeadas de garantias. Sujeitar o arguido à leitura ou reprodução das suas declarações anteriores sem que tenha manifestado a sua vontade nesse sentido ou mesmo contra a sua vontade expressa constitui uma agressão à sua dignidade, uma forma – ainda que inspirada pela benevolência − de o tratar como objeto do comportamento estatal. Em quarto lugar, é difícil compreender de que modo a não leitura ou reprodução de declarações presta- das pelo arguido quando este o não requeira possa ofender o princípio da lealdade. Quando o julgamento se inicia, o arguido tem a noção perfeita de que essas declarações, uma vez indicadas no despacho de acusação, e desde que prestadas em estrita obediência às exigências legais, constituem meios de prova. Da mesma forma, um documento da sua autoria pode ser valorado ainda que não seja lido em julgamento ou uma escuta tele- fónica em que tenha intervindo pode ser valorada mesmo que não reproduzida em audiência. Só haveria falta de lealdade se o despacho de acusação não mencionasse o meio de prova em causa. Finalmente, note-se que o juízo de inconstitucionalidade não recai sobre uma norma que admita a valoração das declarações prestadas pelo arguido sem que o juiz que preside ao julgamento o tenha questio- nado sobre se pretende que as mesmas sejam lidas ou reproduzidas em audiência. Por outras palavras, não está em causa a questão da admissibilidade constitucional do consentimento tácito perante a evidência de que o arguido está na posse de todos os dados e condições para exercer a faculdade que se lhe reconhece de exigir a leitura ou reprodução. O juízo de inconstitucionalidade proferido neste Acórdão vai muito para além disso: pela sua amplitude, exige-se a leitura ou reprodução mesmo nos casos em que o arguido tenha expres- samente renunciado a tal direito. A recondução desta exigência ao valor eminente da dignidade da pessoa, como sujeito capaz de se autodeterminar através de decisões livres e esclarecidas, parece-nos a quadratura do círculo. – Gonçalo de Almeida Ribeiro – João Pedro Caupers. Anotação: 1 – Os Acórdãos n. os 169/92, 634/93, 695/95, 304/04 e 181/05 estão publicados em Acórdãos , 22.º, 26.º, 32.º, 59.º e 61.º Vols., respetivamente. 2 – Os Acórdãos n. os 155/07 e 228/07 estão publicados em Acórdãos, 68.º Vol.. 3 – Os Acórdãos n. os 461/11, 179/12, 340/13 e 108/14 estão publicados em Acórdãos, 82.º, 83.º, 87.º e 89.º Vols., respetivamente. 4 – Os Acórdãos n. os 367/14, 399/15, 360/16 e 298/19 estão publicados em Acórdãos , 90.º, 93.º, 96.º e 105.º Vols., respetivamente.

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