TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 109.º Volume \ 2020

648 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL que se disse for acompanhada do (ou compensada pelo) reconhecimento ao arguido presente em audiência de julgamento de um direito a dispor do que anteriormente declarou. Isto é, se, para além do contraditório pela prova, lhe for assegurado um contraditório sobre a prova de que foi fonte, tendo por base, senão a liber- dade declarativa que em geral lhe assiste, ao menos o seu direito à não autoincriminação. 21. Ao decidir prestar declarações perante autoridade judiciária no âmbito do inquérito ou da instrução, o arguido renuncia ao direito ao silêncio que a Constituição e a lei lhe conferem e, independentemente do conteúdo das declarações que prestar, ainda ao seu direito à não autoincriminação. O aproveitamento probatório de tais declarações pelo tribunal de julgamento significa a projeção dessa renúncia para além do momento processual em que a mesma teve lugar e, em particular, a conservação dos seus efeitos no processo de modo a que estes possam vir a concorrer e contribuir para a decisão de considerar ou não verificados os pressupostos da responsabilidade. Veja-se que essa renúncia – e, consequentemente, o potencial do seu impacto probatório ulterior – não depende da confissão, total ou parcial, dos factos imputados. Em rigor, nem sequer a pressupõe. Desde que atendíveis pelo tribunal de julgamento, quaisquer declarações anteriormente prestadas pelo arguido, ainda que exoneratórias, poderão ser sempre valoradas em seu desfavor, designadamente para contrariar ou criar dúvida sobre a veracidade das declarações que decida prestar no âmbito da audiência ou, em qualquer caso, para diminuir a respetiva credibilidade perante o julgador (vide Saunders v. Reino Unido , decidido pelo TEDH por acórdão de 17 de dezembro de 1996, p. 71.). Ora, se isto é assim, parece que o respeito pleno pela decisão de vontade do arguido – que constitui, como vimos, um limite permanente e contínuo à possibilidade da sua utilização como meio de prova – há de implicar que, uma vez presente em audiência de julgamento, lhe seja conferida a possibilidade de tomar parte do ato pelo qual o tribunal (amplamente entendido) acede ao conteúdo das declarações que aquele prestou anteriormente no processo e, uma vez confrontado com o respetivo teor, de explicitar, contextualizar e completar as afirmações que produziu, explicando quaisquer contradições em que possa ter incorrido e esclarecendo eventuais hesitações ou oscilações na resposta às perguntas feitas pela entidade judiciária res- ponsável pelo interrogatório, sobretudo nos casos em que este tem lugar numa fase precoce do inquérito e, portanto, num momento em que o objeto do processo ainda não se encontra fixado nos termos definitivos em que o vem a ser no despacho de acusação. Numa palavra, ao arguido há de ser reconhecido o direito de controlar aquilo que declarou e, em condições de interação comunicativa e reciprocidade dialética com o tribunal, de participar no estabelecimento do efeito autoincriminador com que as suas anteriores declarações hão de valer no momento do apuramento da sua responsabilidade. Para além de conviver mal com o princípio da lealdade do procedimento, a valoração pelo tribunal de julgamento das declarações de arguido a que se refere o artigo 357.º, n.º 1, alínea b) , do referido Código, sem que tenha havido lugar à sua reprodução ou leitura em audiência, por decisão documentada em ata, constitui, por isso, uma afetação do direito à não autoincriminação extraível do artigo 32.º, n. os 1 e 5, da Constituição, e, no sentido em que priva o arguido do domínio sobre aquilo que declarou, do direito ao res- peito que é devido pela sua decisão de vontade, o qual, para além de integrar o conteúdo essencial do estatuto do arguido enquanto sujeito do processo, constitui o fundamento último daquele primeiro. É por isso que, apesar de não atingir a zona nuclear da prerrogativa da não autoincriminação – ou, na formulação habitual- mente seguida pelo TEDH, de a não extinguir na sua essência (vide, entre outros, Heaney and MacGuiness v. Irlanda , decidido por acórdão de 21 de dezembro de 2000) –, tal afetação se encontra sujeita aos limites impostos pelo artigo 18.º da Constituição às leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, em particular ao princípio da proibição do excesso acolhido no respetivo n.º 2. 22. De acordo com a metódica assente no triplo teste desde há muito seguida na jurisprudência deste Tribu- nal (cfr. Acórdão n.º 634/93), a proibição do excesso supõe que a medida seja adequada aos fins que através dela se prosseguem; que essa medida seja exigida para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros

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