TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 109.º Volume \ 2020

471 acórdão n.º 659/20 A noção de que na decisão recorrida se julgaram aplicáveis ambos os segmentos normativos – e que, assim, se verificou nos autos uma dupla recusa de aplicação de normas − é igualmente inaceitável. Se a situa- ção dos autos se subsume no conceito de «lesão grave», não pode o tribunal a quo ter recusado efetivamente a aplicação do segmento relativo a «acidente de trabalho que evidencie uma situação particularmente grave»; o que a respeito deste último consta na decisão recorrida será, nesse caso, mero obiter dicta . Se, pelo contrá- rio, o tribunal a quo recusou efetivamente a aplicação do segmento que respeita a acidente que «evidencie uma situação particularmente grave», só o pode ter feito no pressuposto de que esse segmento, e não o que diz respeito a lesão grave, é aplicável nos autos. Em suma, é aplicável no caso vertente uma ou a outra das duas normas – tertium non datur . É claro que o tribunal recorrido pode ter tido dúvidas sobre se a situação dos autos se subsume no conceito de lesão grave; porém, não podendo os tribunais abster-se de julgar com fundamento na dificuldade da questão ou na obscuridade da lei, era indispensável que tomasse uma decisão sobre a norma aplicável. Por fim, não se pode aceitar a ideia de que a decisão recorrida apreciou a constitucionalidade de ambos os segmentos antes de determinar qual dos dois era aplicável ao caso dos autos. E isto pelo facto de que o recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC pressupõe a utilidade da pronúncia do Tribunal Constitucional sobre a conformidade constitucional de cada uma das normas que integra o res- petivo objeto, consubstanciada no dever de o tribunal recorrido, em caso de provimento do recurso quanto a determinada norma, reformar a decisão de acordo com o julgamento sobre a questão de constitucionalidade. Por outras palavras, a jurisdição constitucional não se pronuncia sobre questões hipotéticas, designadamente a respeito da constitucionalidade de normas que o tribunal a quo entende serem eventualmente aplicáveis nos autos. Daí o requisito de que, nos casos de recusa de aplicação, a mesma tenha sido efetiva. Ora, tendo em conta que a decisão recorrida progrediu para a apreciação da constitucionalidade do seg- mento normativo cuja aplicabilidade é residual ou subsidiária – aquele que respeita a «acidente que evidencie uma situação particularmente grave para a saúde e segurança dos trabalhadores» −, não pode deixar de presu- mir-se que julgou inaplicável, não apenas a norma que respeita aos casos de morte, mas ainda aqueloutra que incide sobre os casos de lesão grave de trabalhadores. Só assim se torna plenamente inteligível, no contexto de uma decisão judicial, a afirmação segundo a qual, «o subjetivismo aumenta se nos reportarmos ao segundo segmento (…) de acidentes [que] evidenciem uma situação particularmente grave para a segurança ou a saúde dos trabalhadores. A densificação do conceito de “situação particularmente grave” para a segurança ou a saúde dos trabalhadores», tem contornos ainda menos precisos e aberto a subjetivismo, aumentando o grau de incerteza jurídica quanto ao conteúdo da conduta típica, afrontando o princípio da segurança jurídica. (…). Ao abrir-se as portas à mera subjetividade, o agente não encontra no texto da lei a objetivação necessária e adequada que garanta a segurança e confiança jurídicas.» É este segmento normativo, pois, o objeto do presente recurso. 7. Como reconhece o Ministério Público, a norma cuja constitucionalidade é apreciada no presente recurso tem evidentes afinidades com aquela sobre a qual incidiu o Acórdão n.º 76/16, que se apoia num acervo consolidado de jurisprudência constitucional. Nessa decisão, julgou-se inconstitucional, por violação do artigo 2.º da Constituição, norma contida no diploma regulamentador do Código do Trabalho que comi- nava como contraordenação a violação do dever de comunicar à Autoridade para as Condições do Trabalho, nas vinte e quatro horas posteriores à ocorrência, «os acidentes que evidenciem uma situação particularmente grave». Sem prejuízo da consideração ulterior de putativas diferenças relevantes entre a norma então julgada inconstitucional e aquela que constitui o objeto do presente recurso, algumas das quais expressamente refe- ridas pelo recorrente, importa reconstituir o essencial da fundamentação de que se valeu o referido aresto. 8. O Tribunal começou por considerar o alcance do princípio da tipicidade, expressamente consagrado para os crimes no artigo 29.º da Constituição, no domínio das infrações contraordenacionais. Fê-lo nos seguintes termos:

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