TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 109.º Volume \ 2020

382 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 10. Ao menos, se essa revogação se revelasse ser imperiosa e urgente, que se tivesse adotado um regime de transição para acompanhar essa decisão, a exemplo do que já sucedeu inúmeras situações de extinção de regimes fiscais – como veremos adiante. 11. Relembremos que, nas vésperas dessa revogação súbita, o comportamento do Estado, na dupla vertente legislativa e administrativa, era ainda de molde a não apenas alimentar, ou até encorajar, legítimas expectativas das SGPS passíveis de tutela constitucional; como a incentivar e consolidar comportamentos dos sujeitos passivos que se traduziram em incrementos de despesas e de tributação. 12. A já aludida nova redação dada ao artigo 3.º, 3 do EBF pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, é apenas a ilustração mais eloquente desse comportamento do Estado, ao excecionar da regra geral da caducidade de cinco anos o benefício previsto no artigo 32.º do EBF. III.C.2.7. Problemas de Inconstitucionalidade e a Tutela da Confiança 1. É manifesto que vários princípios constitucionais são afrontados pela forma peculiar, e derrogadora até de alguns preceitos do próprio EBF – como veremos –, que o legislador escolheu para pôr termo ao regime de tribu- tação das mais-valias das SGPS resultantes da alienação de participações sociais. 2. Mesmo reconhecendo a liberdade de conformação de que goza o legislador, essa revogação  ex lege  de um benefício fiscal como o consagrado no artigo 32.º do EBF parece violar muito nitidamente uma ponderação de proporcionalidade que ultrapassa muito o mero âmbito dos atos administrativos, para poder considerar-se um princípio geral de Direito, e mormente de Direito Público. 3. Ao sacrificar uma confiança tutelada das SGPS, e ao fazê-lo na ausência de uma justificação clara, e explici- tada, quanto à forma como interesses públicos extrafiscais relevantes que eram tidos por superiores aos da própria tributação que impediam (para usarmos os termos do artigo 2.º do EBF) passaram subitamente a ser tidos por inferiores a esses interesses públicos fiscais; e na ausência, abundantemente demonstrada, de uma perceção, da parte dos sujeitos passivos, de que essa inversão total de prioridades estava prestes a ocorrer, ou ocorrera já, torna-se compreensível a suspeita de que o legislador foi muito para lá do necessário, muito para lá do reclamado pelos objetivos a alcançar com o próprio ato legislativo. 4. Aliás, mesmo uma situação de definição clara de finalidades, e mesmo que houvesse consenso relativamente a essas finalidades – fosse a necessidade de prevenir abusos, fosse a necessidade mais elementar de aumentar as receitas –, não dispensa o Estado, na dupla vertente de legislador e de administrador, de atuar segundo o due process of law , formal e material, que o Estado de Direito implica, respeitando assim os princípios e regras que formam a constituição fiscal, em que se consubstancia o referido “processo devido”, na qual justamente se integra, como uma das expressões mais genuínas, o princípio da proteção da confiança legítima – não podendo juridicamente vislum- brar-se um interesse cuja proeminência ou urgência se sobreponha à proteção da confiança legítima depositada no Estado por agentes de boa fé, ao longo do tempo.[…] 5. A suspeita de que se transgrediu a proporcionalidade, e as fronteiras da necessidade e da adequação, aden- sa-se se consideramos as alternativas possíveis para se alcançar um objetivo similar sem se fazer tábua-rasa de salvaguardas mínimas (recordemo-lo: alterar novamente a redação do artigo 3.º, 3 do EBF; estabelecer um prazo curto para a vigência do regime; estabelecer um período de transição): não se torna então mais evidente que pode ter ocorrido um sacrifício desnecessário e demasiado, face a objetivos que talvez não fossem tão superiores, ou não fossem absolutamente urgentes? 6. Por outro lado, o cidadão deve poder prever as intervenções que o Estado poderá levar a cabo sobre ele ou perante ele, e preparar-se para se adequar a elas, e deve poder confiar em que a sua atuação de acordo com o Direito seja reconhecida pela ordem jurídica, e assim permaneça em todas as suas consequências juridicamente relevantes. Esta confiança é violada sempre que o legislador ligue, a situações de facto constituídas e desenvolvidas no pas- sado, consequências jurídicas mais desfavoráveis do que aquelas com que o atingido podia e devia contar. Um tal procedimento legislativo afrontará frontalmente o princípio do Estado de direito democrático, lançando sobre ele

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