TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 109.º Volume \ 2020

33 acórdão n.º 751/20 Diferentemente, se a lei nova se pretende aplicar a factos e situações jurídicas anteriormente discipli- nados por um direito certo, então este último é modificado, violando-se expectativas quanto à sua conti- nuidade, e tal lei, na medida em que inove relativamente ao direito anterior – qualificando-se já não como lei interpretativa, mas sim como lei inovadora –, será substancial ou materialmente retroativa (cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito …, cit., p. 247). Nesta perspetiva, e tendo em conta a ótica da tutela da confiança dos destinatários do direito, relevará, então, que a lei verdadeiramente interpretativa é apenas formalmente retroativa, uma vez que se limita a declarar o direito preexistente; ao passo que a lei autoqualificada como interpretativa mas que em boa ver- dade seja inovadora se deva considerar como material ou substancialmente retroativa, porquanto, ao modi- ficar o direito preexistente, constitui direito novo. Na verdade, pode suceder – e sucede com alguma frequência – que o legislador declare ou qualifique expressamente como “interpretativa” certa disposição de uma lei nova, mesmo quando essa disposição seja na realidade inovadora. Ora, uma lei que modifique o direito preexistente – o mesmo é dizer, que constitua direito novo – sob a capa de “lei interpretativa”, porque criadora de efeitos jurídicos novos para os respetivos destinatários, violará necessariamente uma eventual proibição de leis retroativas; porém, a lei genuinamente interpretativa, porque se limite a declarar o direito que já vigora e com o qual os respetivos destinatá- rios podem contar, não violará tal proibição, do mesmo modo que toda e qualquer interpretação jurídica, incluindo a feita pelos tribunais, também não pode considerar-se como produtora de efeitos jurídicos novos que frustrem «expectativas seguras e legitimamente fundadas». 11. Sucede que, do ponto de vista do direito constitucional, e no que se refere à interpretação da lei, não pode abstrair-se das diferenças orgânicas e funcionais entre legislador e julgador. É a relevância das mesmas, já salientada nos mencionados Acórdãos n. os 267/17 e 395/17, que cumpre aqui recordar e reiterar. A iurisdictio ou função de “dizer o direito” – de o declarar a partir das pertinentes fontes jurídico-for- mais – compete constitucionalmente aos tribunais (cfr. o artigo 202.º, n.º 1, da Constituição). Sendo certo que o tribunal não se identifica com o juiz, há, todavia, decisões e atos que só este último pode praticar (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada , vol. II, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anotação I ao artigo 202.º, p. 506). É nisto que se traduz a reserva de juiz relativa- mente ao exercício da função jurisdicional (reserva de jurisdição): «Tribunal [tem neste artigo 202.º] um sentido jurídico-funcional – daí a epígrafe “função jurisdicional” – conexionada com um sentido inerente à função de jurisdictio e uma função jurídico-material ( jurisdictio como atividade do juiz materialmente caracterizada). A atribuição da função jurisdicional aos tribunais, nos termos do n.º 1, radica no facto de as decisões dos tribunais serem imputadas, para efeitos externos, a um tribunal […] e não a um juiz. Isto não perturba o entendimento de que neste artigo (202.º-1) a Constituição estabelece uma reserva de jurisdição no sentido de que dentro dos tribunais só os juízes podem ser chamados a praticar atos materialmente jurisdicionais. O conceito constitucional de função jurisdicional pressupõe, portanto, a atribuição da função juris- dicional a determinadas entidades (magistrados) que atuam estritamente vinculados a certos princípios (indepen- dência, legalidade, imparcialidade).» (v. Autores cits., ibidem , anot. VI, p. 509). Por outro lado, o n.º 2 do artigo 202.º identifica o conteúdo da função jurisdicional por referência a três diferentes áreas de intervenção: defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; repressão de violação da legalidade; dirimição de conflitos de interesses públicos e privados. Como se salientou por exemplo no Acórdão n.º 230/13, «o entendimento comum é o de que a Constituição pretendeu, deste modo, instituir uma reserva de jurisdição, entendida como uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais. Nesse sentido, poderá apenas discutir-se o âmbito de delimitação dessa reserva, quer por efeito das dificuldades que possa suscitar, em cada caso concreto, a distinção entre função administrativa e função jurisdicional, quer por via da maior ou menor latitude que se possa atribuir ao conceito […]».

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