TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 109.º Volume \ 2020
319 acórdão n.º 603/20 Quando, mais tarde, o legislador decidiu que Portugal, enquanto país da residência, passaria a atribuir, unila- teralmente (ou seja, independentemente da existência de uma CDT) um crédito de imposto por dupla tributação internacional, não alterou a expressão “fração do IRC”. Ou seja, a análise da evolução do elemento literal não per- mite, em momento algum, surpreender uma vontade legislativa de distinguir entre a efetivação (as coletas às quais pode ser deduzido) do crédito de imposto nas situações em que existe uma CDT e aquelas em que não existe (em que a concessão de tal crédito é unilateral, resultante da lei interna). O elemento teleológico da interpretação também não aponta no sentido defendido pela Requerida [ora recor- rente]. A decisão de Portugal passar a conceder, unilateralmente ( i. e. , na ausência de uma CDT que o imponha), aos seus residentes com rendimentos oriundos do estrangeiro, um crédito em razão do imposto pago nos países da fonte dá expressão ao chamado princípio da neutralidade na exportação: “os sujeitos passivos que obtenham rendimentos noutros estados devem ficar abrangidos por um tratamento fiscal similar ao aplicável àqueles cujos rendimentos sejam obtidos exclusivamente no estado de residência” . Está, pois, em causa uma igualdade entre residentes, que não deve resultar limitada por interpretações restritivas da lei, por interpretações que restrinjam a possibilidade efetiva de dedução de um tal crédito. Por último, haverá que considerar o elemento sistemático da interpretação que se traduz em apurar qual a interpretação que se afigura mais coerente com o sistema jurídico em que a norma se insere, considerado no seu todo. Ora não há dúvida que as obrigações assumidas por Portugal, nomeadamente no quadro da OMC quer, em especial, no Acordo sobre a Promoção e a Proteção Recíproca de Investimentos celebrado com Angola (país onde, como provado, se situa o principal estabelecimento estável da requerente no estrangeiro) – as quais vão no sentido da eliminação de restrições à livre concorrência internacional em matéria de investimento – resultarão mais cabalmente cumpridas se, no plano fiscal, se evitarem diferenciações entre os residentes que invistam no exterior, consoante o país onde tais investimentos aconteçam. Ou seja, mesmo que se possa entender que tais compromissos internacionais não vinculam diretamente o legislador fiscal, o intérprete não poderá deixar de os ter presentes, em nome da unidade do sistema jurídico, considerado no seu todo. A interpretação que assegura a coerência do sistema jurídico é, certamente, a que corresponde “à solução legal mais acertada” que é suposto ter sido acolhida pelo legislador (n.º 3 do art.º 9.º do Código Civil). Finalmente, e ainda no quadro do elemento racional/teleológico da interpretação, não se poderá deixar de se ponderar o absurdo que consiste em pretender manter intacta a coleta da derrama municipal em situações em que tal conduziria a uma dupla tributação internacional do rendimento. Diríamos mesmo que, racionalmente, seria esta a coleta relativamente à qual deveria ser efetivada, em primeiro lugar, a dedução correspondente ao crédito por dupla tributação internacional. Na realidade, a derrama municipal visa dotar as autarquias de recursos finan- ceiros próprios, obtidos através de impostos incidentes sobre aqueles que realizam atividades lucrativas na área de determinado município. Assim sendo, indo além da questão concreta em análise, parece destituído de fundamento razoável exigir o pagamento de um tal imposto relativamente a atividades exercidas fora do território nacional. O que, por maioria de razão, reforça o nosso entendimento de que o pagamento deste tributo deve ser “eliminado” por dedução de créditos por dupla tributação internacional sempre que a coleta de IRC, stritcto sensu , não se mostre suficiente para os absorver na totalidade, como acontece no presente caso. Assim é que, na expressão “fração do IRC” constante da então al. b) do n.º 1 do art.º 41.º (hoje, art.º 91.º) se deve incluir a coleta da derrama municipal. O mesmo é dizer que o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração da coleta de tal imposto originado por rendimentos obtidos no estrangeiro.» Nestes termos, a interpretação normativa ora sindicada não distorce nem transfigura os elementos essen- ciais do imposto em causa ao arrepio da imposição constitucional consubstanciada no princípio da legalidade fiscal. Ao não contrariar a configuração dos correspondentes elementos essenciais, tal dimensão de deduti- bilidade não só não fere o sentido constitucional da legalidade fiscal, como parece ser justificada com base na coerência do próprio instituto do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional e as finalidades que, com a sua consagração, o legislador legitimamente visa prosseguir.
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