TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 109.º Volume \ 2020
317 acórdão n.º 603/20 e de conteúdo constitucionalmente desenhados, para que seja possível a cobrança de impostos. Sem prejuízo da abertura autorizada a outras modalidades, a lei é, por excelência, o instrumento mais capaz de assim salvaguardar. Com efeito, a ideia subjacente à legalidade tributária, numa perspetiva material, expressa-se, antes de mais, no princípio da tipicidade da lei fiscal, que implica que a obrigação legal-tributária tem de ser determinada de forma suficiente quer quanto à sua incidência, quer no seu quantum . Assim, para produzir efeitos, o tipo normativo fiscal delimita, abstratamente, a natureza e a medida do acontecimento económico-social a que pretende atribuir relevância fiscal, consagrando-o como facto tributário, com significado jurídico. Não basta, pois, uma previsão genérica de prin- cípios ou bases gerais, suscetíveis a arbitrariedades; é indispensável abordar, especificamente, a “disciplina normativa destes aspetos” (José Casalta Nabais, O dever fundamental de pagar impostos, Almedina, 2009, p. 368). Desta forma, fica claro que a finalidade do comando constitucional de garantia da legalidade fiscal é, por um lado, acautelar a estabilidade e a segurança da legítima expetativa que contribuintes depositam no Estado quanto à imposição de obrigações jurídicas com repercussões na sua capacidade patrimonial; e, ao mesmo tempo, afastar o risco de usurpação da legitimidade democrática inserta nas instâncias de representação política por parte de outros órgãos do Estado, investidos de atribuições de igual dignidade e relevo, porém com distintos graus de legitimação democrática e responsabilização pública ( accountability ) que não se coadunam, em princípio, com o estabeleci- mento de institutos tributários, pelas razões explicadas. Isto mesmo tem repetidamente afirmado o Tribunal Cons- titucional; recorde-se, por exemplo, o disposto no Acórdão n.º 545/15: “a exigência de reserva de lei em matéria tributária, que tem origem no princípio da autotributação dos impostos e fundamento justificativo na garantia dos direitos fundamentais dos contribuintes, abrange necessariamente os chamados elementos essenciais dos impostos. Com efeito, o princípio da legalidade fiscal está expressamente consagrado na Constituição na vertente de reserva material de lei formal: no artigo 168.º, n.º 1, alínea i) , que reserva à exclusiva competência da Assembleia da Repú- blica, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a criação de impostos e sistema fiscal (princípio da reserva de lei formal); e no artigo 103.º, n.º 2, que estabelece que os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes (princípio da reserva material)”. Em suma, a caraterização de certo facto como tributariamente relevante e do cálculo do montante de imposto, se algum, sobre ele refletido estão reservados à tipicidade da lei fiscal, em razão da necessidade de se observar o critério da máxima especificação possível, com vista a determinar o cumprimento da obrigação futura, salva- guardando-a de uma eventual transfiguração aleatória por parte dos intérpretes e aplicadores da norma, que seria incompatível com a Constituição da República Portuguesa. 10. Todavia, e uma vez que não é possível a determinabilidade antecipada de toda e qualquer situação que se enquadre nas hipóteses de sujeição à tributação, o postulado da praticabilidade tem, de alguma maneira, relati- vizado a exigência de uma tipicidade absoluta, em benefício da concreta igualdade fiscal. Conforme explica Ana Paula Dourado, “a enumeração taxativa conduzirá a uma maior imprecisão, no sentido em que certos rendimentos semelhantes ao ‘paradigma’, ao ‘tipo’ objeto da lei, ficam de fora, e conduzem a um tratamento diferente de situa- ções semelhantes. Neste caso, a lei não cumpre a sua função de verdadeiro critério orientador do intérprete e de garante de um Estado de Direito” (Ana Paula Dourado, O princípio da legalidade fiscal: tipicidade, conceitos jurídicos indeterminados e margem de livre apreciação, Almedina, 2007, p. 149). Além disso, e como recorda Sérgio Vasques (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, Almedina, 2018, p. 363) “as normas tributárias raramente têm uma só leitura, portanto, e é comum que a letra da lei fiscal nos ofereça várias interpretações possíveis, entre as quais há que decidir lançando mão dos demais elementos de interpretação”. Por esse motivo, a ideia de praticabilidade, ou concordância prática entre as várias normas e princípios jurí- dico-fiscais, entre si e em relação à realidade fáctica a que devem aplicar-se, convoca o aplicador das normas para uma tarefa de conciliação interpretativa, de forma a imprimir coerência sistémica ao regime tributário. Conse- quentemente, a atividade hermenêutica dos tribunais – sempre que se defrontem com conflitos ou dúvidas de natureza normativa no que respeita aos elementos essenciais de um imposto – orienta-se para a busca de um equilíbrio entre segurança, plausibilidade e lógica sistemática das normas e institutos jurídicos mobilizáveis no caso concreto. Esta tem sido, também, a posição do Tribunal Constitucional, em vasta jurisprudência (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos n. os 233/94, 756/95, 127/04, 500/09 e 855/14) que admite a necessidade de um espaço
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=