TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 109.º Volume \ 2020

290 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL auferidos por este faz presumir a sua proveniência ilícita, importando impedir a manutenção e consolidação dos ganhos ilegítimos. Em suma, a presunção de proveniência ilícita de determinados bens e a sua eventual perda em favor do Estado não é uma reação pelo facto de o arguido ter cometido um qualquer ato criminoso. Trata-se, antes, de uma medida associada à verificação de uma situação patrimonial incongruente, cuja origem lícita não foi determinada, e em que a condenação pela prática de um dos crimes previstos no artigo 1.º da Lei 5/2002 de 11 de janeiro tem apenas o efeito de servir de pressuposto desencadeador da averiguação de uma aquisição ilícita de bens. Tendo em conta o aqui exposto, nesse procedimento enxertado no processo penal não operam as normas cons- titucionais da presunção da inocência e do direito ao silêncio do arguido, invocadas pelo recorrente. […] Acresce ainda que, no plano processual, o regime de perda de bens previsto na Lei n.º 5/2002, embora assente numa condenação pela prática de determinado ilícito criminal (integrante do catálogo previsto no artigo 1.º da Lei n.º 5/2002), está sujeito a um procedimento próprio, enxertado no procedimento criminal pela prática de algum dos aludidos crimes, no qual o legislador não deixou de ter em atenção diversas garantias processuais. Desde logo, como vimos, o montante apurado como devendo ser declarado perdido em favor do Estado deve constar de um ato de liquidação, integrante da acusação ou de ato posterior, onde se indicará em que se traduz a desconformi- dade entre o património do arguido e o que seria congruente com o seu rendimento lícito. Este ato de liquidação é notificado ao arguido e ao seu defensor, podendo o arguido apresentar a sua defesa, nos termos já referidos, assegurando-se, assim, um adequado exercício do contraditório, sendo que, conforme se referiu, para ilidir a pre- sunção, o arguido pode utilizar qualquer meio de prova válido em processo penal, não estando sujeito às limitações probatórias que existem, por exemplo, no processo civil ou administrativo, além de que o próprio tribunal deverá ter em atenção toda a prova existente no processo, donde possa resultar ilidida a presunção estabelecida no artigo 7.º, n.º 1, da Lei 5/2002, de 11 de janeiro (artigo 9.º, n.º 1, do mesmo diploma). […]” (itálicos acrescentados). Da jurisprudência citada importa reter, para além das notas de direito comparado [cfr., ainda, sobre este ponto, Jorge Godinho, “Brandos costumes? O confisco penal com base na inversão do ónus da prova (Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, artigos 1.º e 7.º a 12.º)”, in Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias , Coimbra, 2003, pp. 1315 e seguintes, especialmente pp. 1320 e seguintes], a existência de uma cisão quanto à natureza substancial entre o objeto do processo estritamente penal (sujeito às garantias particularmente exi- gentes do processo criminal) e a perda de bens, cujo valor o arresto visa garantir, com autonomia substancial (não se trata de “reação pelo facto de o arguido ter cometido um qualquer ato criminoso”) e formal (com procedimento próprio, apesar de enxertado no processo penal). Na verdade, o arresto previsto na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, tem uma natureza diversa, face a meios processuais penais, designadamente o arresto preventivo previsto no artigo 228.º do CPP [cfr. M. Costa Andrade e M. J. Antunes, “Da natureza processual penal do arresto preventivo”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 27, n.º 1 (janeiro-abril de 2017), pp. 135 e seguintes, especialmente pp. 141/143, e João Conde Correia, “Apreensão ou arresto preventivo dos proventos do crime?”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal , ano 25, n. os 1 a 4 (janeiro-dezembro de 2015), pp. 505 e seguintes, especialmente p. 538, e “«Non-conviction based confiscations» no direito penal português vigente: «quem tem medo do lobo mau?»”, in Revista Julgar, n.º 32 (maio-agosto de 2017), pp. 71 e seguintes, concluindo, a p. 94: “[n]este modelo de mera restauração de uma ordem patrimonial conforme ao direito, o confisco não é uma pena. Em causa está, apenas, corrigir uma situação patrimonial ilícita, que não goza de tutela jurídica. O mecanismo dirige-se contra os próprios bens, sem um qualquer juízo de censura da ação ou omissão individual que lhes está subjacente. Se assim não for, quando por força das especificidades das concretas normas jurídicas apli- cáveis, o confisco tiver afinal caráter punitivo, será impossível decretá-lo sem prévia condenação, sob pena de violação de princípios jurídico-constitucionais básicos, como, por exemplo, a presunção de inocência”].

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