TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 109.º Volume \ 2020

285 acórdão n.º 595/20 patrimonial dos bens correspondente ao direito vigente. Um Estado de Direito não pode deixar de preocupar-se em reconstituir a situação patrimonial que existia antes de alguém através de condutas ilícitas ter adquirido vantagens patrimoniais indevidas, mesmo que estas não correspondam a um dano de alguém em concreto. Neste regime geral, a perda das vantagens pressupõe a demonstração de que as mesmas foram obtidas, direta ou indiretamente, como resultado da prática de um facto ilícito, ou seja, exige a prova, no processo, da existência de uma relação de conexão entre o facto ilícito criminal concreto e o correspondente proveito patrimonial obtido. Procurando fazer face às novas exigências colocadas pelo combate à criminalidade organizada e económico-finan- ceira, cada vez mais sofisticada e geradora de elevados proventos, a Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, introduziu no ordenamento jurídico nacional um regime de perda de vantagens resultantes da prática de determinados ilícitos que não exige a aludida demonstração. Com este regime, em caso de condenação por um dos crimes integrantes do catálogo previsto no seu artigo 1.º, aprecia-se a congruência entre o património do arguido e os seus rendimentos lícitos, sendo declarado perdido em favor do Estado o valor do património do arguido que seja excessivo em relação aos seus rendimentos lícitos, se o arguido não ilidir a presunção de que esse património excessivo resultou da atividade criminosa [cfr., em geral, sobre esta matéria, Augusto Silva Dias, «Criminalidade organizada e combate ao lucro ilícito», in 2.º Congresso de Investigação Criminal, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 23 a 47; João Conde Correia, Da proibição do confisco à perda alargada , Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2012; Jorge A. F. Godinho, «Brandos Costumes? O confisco penal com base na inversão do ónus da prova», in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pp. 1315-1363; Jorge Dias Duarte, «Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro – Breve comentário aos novos regimes de segredo profissional e de perda de bens a favor do Estado», Revista do Ministério Público , Ano 23, jan./mar. 2002, n.º 89, pp. 141-154; José M. Damião da Cunha, «Perda de bens a favor do Estado», in Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira, CEJ, Coimbra Editora, 2004, pp. 121-164; Pedro Caeiro, «Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto com outros meios de prevenção da criminalidade reditícia (em especial, os procedimentos de confisco in rem e a criminalização do enriquecimento “ilícito”)», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, N.º 2, abril-junho 2011, pp. 267- 321). Este propósito do legislador encontra-se expressamente assumido na exposição de motivos constante da Proposta de Lei n.º 94/VIII (que esteve na origem da referida Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro), onde se refere, a esse respeito, que «(…) a eficácia dos mecanismos repressivos será insuficiente se, havendo uma condenação criminal por um destes crimes [identificados no artigo 1.º], o condenado puder, ainda assim, conservar, no todo ou em parte, os proventos acumulados no decurso de uma carreira criminosa . Ora, o que pode acontecer é que, tratando-se de uma atividade continuada, não se prove no processo a conexão entre os factos criminosos e a totalidade dos respetivos proventos, criando-se, assim, uma situação em que as fortunas de origem ilícita continuam nas mãos dos criminosos, não sendo estes atin- gidos naquilo que constituiu, por um lado, o móbil do crime, e que pode constituir, por outro, o meio de retomar essa atividade criminosa», acrescentando-se ainda que, com este regime, se prevê que «(…) em caso de condenação por um dos crimes previstos no seu artigo 1.º, se aprecia a congruência entre o património do arguido e os seus rendimentos lícitos. O valor do património do arguido que seja excessivo em relação aos seus rendimentos cuja licitude fique provada no processo são declarados perdidos em favor do Estado». No entanto, embora não se exija a prova da conexão entre o ilícito criminal e os respetivos proventos, o regime da perda de vantagens da atividade criminosa exige que se mostrem verificados alguns requisitos, conforme decorre, designadamente, dos artigos 7.º e 9.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro. Assim, em primeiro lugar, terá de haver condenação por um dos crimes previstos no artigo 1.º da referida Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro (tráfico de estupefacientes, terrorismo e organização terrorista, tráfico de armas, tráfico de influência, corrupção ativa e passiva, peculato, participação económica em negócio, branqueamento de capitais, associação criminosa, contrabando, tráfico e viciação de veículos furtados, lenocínio e lenocínio de menores, tráfico de pessoas, contrafação de moeda e de títulos equiparados a moeda). Para além disso, terá de existir uma diferença entre o valor do património do arguido (integrado pelos bens enumerados nas alíneas a) a c) , do n.º 2, do artigo 7.º) e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito. Existindo essa incongruência de valores, a lei pre- sume que tal diferença constitui vantagem de uma atividade criminosa (sobre os requisitos necessários à aplicação desta medida, matéria sobre a qual não há unanimidade na doutrina, designadamente quanto à necessidade de

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