TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 109.º Volume \ 2020

181 acórdão n.º 566/20 «Sendo o poder de lançar impostos inerente à noção de Estado, como manifestação da sua soberania, perante um longo passado de abusos e arbitrariedades, a introdução do princípio da legalidade nesta matéria veio conferir- -lhe um estatuto de cidadania no mundo do Direito. Assim, para que o Estado possa cobrar um imposto ele terá que ser previamente aprovado pelos representantes do povo e terá que estar perfeitamente determinado em lei geral e abstrata, só assim se evitando que esse poder possa ser exercido de forma abusiva e arbitrária, indigna de um verdadeiro Estado de direito. Por outro lado, o mesmo princípio da legalidade não poderá deixar de impedir que a lei tributária disponha para o passado, com efeitos retroativos, prevendo a tributação de atos praticados quando ela ainda não existia, sob pena de se permitir que o Estado imponha determinadas consequências a uma realidade posteriormente a ela se ter verificado, sem que os seus atores tivessem podido adequar a sua atuação de acordo com as novas regras. Esta exigência revela as preocupações do princípio da proteção da confiança dos cidadãos, também ele prin- cípio estruturante do Estado de direito democrático, refletidas na vertente do princípio da legalidade, segundo o qual, a lei, numa atitude de lealdade com os seus destinatários, só deve reger para o futuro, só assim se garantindo uma relação íntegra e leal entre o cidadão e o Estado. É neste sentido que deve ser entendida a opção do legislador constituinte de, na revisão constitucional de 1997, consagrar no artigo 103.º, n.º 3, a regra da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável. Com esta alteração constitucional não se visou explicitar uma simples refração do princípio geral da proteção da confiança dos cidadãos, inerente a toda a atividade do Estado de direito democrático, mas sim expressar uma regra absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis criadoras ou agravadoras de impostos, prevenindo, assim, a existência de um perigo abstrato de grave violação daquela confiança. O Tribunal Constitucional tem vindo a seguir o entendimento que esta proibição da retroatividade, no domínio da lei fiscal, apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplica- tivo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei ( v. g. Acórdãos n. os  128/09, 85/10 e 399/10, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt ) . (…) Com efeito, conforme refere Cardoso da Costa “(…) a linha demarcadora do âmbito da retroatividade fis- cal constitucionalmente admissível passará, desde logo, pela distinção entre situações tributárias «permanentes» e «periódicas» e «factos» cuja eficácia fiscal se esgota ou se firma «instantaneamente», para cada um deles «de per si» ( maxime , pela distinção entre «impostos periódicos» e «impostos de obrigação única»), e passará provavelmente, depois, no que concerne àquele primeiro tipo de situações, pela distância temporal que já tiver mediado entre o período de produção dos rendimentos e a criação (ou modificação) do correspondente imposto. Isto, de todo o modo, sem prejuízo do relevo de outras circunstâncias, cujo possível peso não poderá ignorar-se.” (Cfr. Cardoso da Costa, “O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal”, in Perspetivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição , Vol. II, Coimbra, 1997, p. 418).» 15. A norma cuja aplicação foi recusada pelo tribunal a quo resulta da interpretação do artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016, que atribui natureza interpretativa à norma do artigo 153.º da mesma Lei, norma esta de incidência fiscal, pois altera a redação da verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, anexa ao Código do Imposto do Selo. Enquanto, na redação anterior, a verba se referia a «Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros», o referido artigo 153.º vem aditar, no final desta formulação, a expressão «incluindo as taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões». O tribunal a quo entendeu que a disposição a que «foi atribuída natureza interpretativa é verdadeiramente inovadora», o que convoca a questão da sua compatibilização com o princípio da não retroatividade fiscal consignado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP.

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