TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 109.º Volume \ 2020
111 acórdão n.º 477/20 Não pode, porém, ignorar-se que só com a reforma da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto – que veio transformar profundamente o direito substantivo em matéria de incapacidade de maiores −, se justificou a alteração do quadro legal adjetivo, de modo que a continuidade da solução legal anterior se deveu mais à inércia do legislador do que a uma opção política sucessivamente renovada. Para que se conclua que o legisla- dor encetou comportamentos aptos a gerar expetativas de continuidade, não basta que a alteração legislativa incida sobre uma norma que gozou de um longo período de vigência; deve haver um sinal claro de que o legislador, ao abster-se de alterar o regime, reiterou-o tacitamente (nesse sentido, vide os Acórdãos n. os 3/16 e 428/18). Acresce que, quando esteja em causa a alteração do direito processual, vale como regra, nos termos do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, na ausência de normas de direito transitório, a aplicação imediata da lei nova aos processos pendentes – mais precisamente, aos atos futuros praticados em ações pendentes. Neste contexto, é razoável supor que os destinatários das leis processuais devessem contar com a possibilidade de alterações legislativas com efeito imediato, pelo que não pode dar-se por evidente que o legislador tenha criado uma situação de confiança. 9.2. Admitindo-se, em todo o caso, que a situação de confiança existia, cabe agora determinar se as expectativas de continuidade dos destinatários da lei eram legítimas, justificadas e fundadas em boas razões. A ação de interdição não visava a composição judicial de um litígio entre as partes, antes a tutela dos interesses do requerido, afetado de forma permanente na capacidade de governo da sua pessoa e bens. O reconhecimento judicial dessa incapacidade repercutia-se, não apenas sobre os atos futuros do incapaz – o efeito prospetivo do decretamento da interdição –, como ainda sobre os atos anteriores. Assim se com- preende que a lei substantiva previsse um regime especial de anulabilidade dos atos praticados e negócios celebrados pelo incapaz na vigência do período de incapacidade fixado na sentença. Em tudo isto, a lei tinha em vista salvaguardar os interesses do requerido. Ora, a solução que constava do artigo 904.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, constituía um desvio à regra geral de que a morte de parte no processo implica a extinção da instância por impossibilidade superve- niente da lide [artigos 269.º, n.º 3 e 277.º, alínea e) , do Código de Processo Civil]. Sendo certo que o objeto precípuo da ação era a tutela dos interesses do interditando, não repugna o entendimento de que, com a extinção da sua personalidade jurídica por morte, a ação perde a sua razão essencial de ser, remetendo-se a tutela dos sucessores do requerido para os meios gerais. Este raciocínio depõe no sentido de que não havia boas razões para que os requerentes de ações de interditação, cujos interesses próprios tinham nelas relevância meramente reflexa, confiassem na continuidade de uma solução legal que representava um desvio em relação ao regime geral. Porém, há uma razão que depõe no sentido contrário. Num quadro genérico de transmissibilidade mortis causa das situações jurídicas patrimoniais (artigo 2024.º do Código Civil), a faculdade concedida pelo artigo 904.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ao facilitar a anulação de negócios jurídicos celebrado pelo interditando em vida, assume-se inequivocamente como uma forma de tutela dos interesses patrimoniais dos sucessores daquele – aos quais, de resto, o artigo 141.º do Código Civil atribuía legitimidade ativa para a propositura da ação de interdição. Neste contexto, pode porventura considerar-se legítima a expectativa do requerente na aplicação da lei anterior, que lhe facul- tava uma vantagem probatória relevante para a tutela de interesses patrimoniais próprios. 9.3. Dando-se por assente – arguendo – que se verificam os dois primeiros requisitos, importa agora questionar se é razoável supor que os destinatários da lei fizeram planos de vida com base na expectativa de continuidade do quadro legal. Há três razões fundamentais para se concluir que esse investimento na confiança não ocorreu ou, a ter ocorrido, é de importância negligenciável.
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