TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 109.º Volume \ 2020
110 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa. Este princípio postula, pois, uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabili- dade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção.» O controlo judicial baseado na proteção da confiança tem afinidades importantes, do ponto de vista metódico, com o que diz respeito às leis restritivas de direitos fundamentais. Os três primeiros testes – situa- ção de confiança, legitimidade da confiança e investimento na confiança – consubstanciam as condições necessárias e suficientes da afirmação de um interesse que, por ser digno de tutela constitucional, é relativa- mente resistente ao legislador. O quarto e último teste consubstancia um juízo de proporcionalidade, nos termos do qual se exige: (i) a graduação da lesão da confiança, em termos análogos aos da determinação da intensidade de uma medida restritiva; (ii) a determinação das razões de interesse público (ou quaisquer outras com relevância constitucional) que legitimam a opção do legislador; e (iii) a ponderação dos sacrifícios e benefícios da medida, com vista a ajuizar da razoabilidade da frustração das expectativas dos destinatários. Vale a pena sublinhar que os testes são cumulativos e implicam um ónus de demonstração: numa demo- cracia constitucional, não se presume que as alterações legislativas ofendem a segurança jurídica dos destina- tários, nem é legítimo decidir a dúvida a esse respeito contra a constitucionalidade das leis. Pelo contrário, o legislador goza de uma prerrogativa de auto-revisibilidade baseada na alternância política e no devir da realidade, de modo que, «não há [...] um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime em relação a relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados» (Acórdão n.º 287/90). Assim o impõe o respeito pelo princípio democrático. A ofensa ao princípio da proteção da confiança é, por isso mesmo, uma possibilidade residual, reservada por via de regra a domínios da atividade legislativa particularmente sensíveis – aqueles mesmos em que a ordem constitucional contém proibições especiais de retroatividade, como sucede com as restrições de direi- tos (artigo 18.º, n.º 3), a incriminação de comportamentos (artigo 29.º, n.º 1) e os encargos fiscais (artigo 103.º, n.º 3) – e operativa, fora desses domínios, somente a título excecional, quando se trate de um sacrifício intolerável das expectativas dos destinatários da lei. 9. Comecemos, então, por aplicar os três primeiros testes da proteção da confiança. 9.1. O primeiro teste respeita à questão de saber se o legislador terá «encetado comportamentos» aptos a gerar nos destinatários da lei expectativas de continuidade – neste caso, a continuidade do regime que atri- buía ao requerente a faculdade de exigir o prosseguimento da ação, após a realização do interrogatório e do exame, na eventualidade da morte do requerente. Alega o Ministério Público – com razão – que o artigo 904.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, man- teve-se inalterado ao longo de décadas, atravessando incólume as mais relevantes reformas do último meio século. Com efeito, a solução constava já da versão originária do artigo 957.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961, perpetuando-se, quer nas reformas intercalares do Código de Processo Civil de 1967 e 1985, quer na profunda reforma de 1995/96, e transitando depois para o artigo 904.º, n.º 1, do Código de Pro- cesso Civil de 2013. Em todo este período, o legislador nunca deu mostras de pretender modificar o regime, nem se conhece nenhum debate doutrinário ou discussão jurisprudencial sobre eventuais deficiências, incon- veniências ou obscuridades de tal solução. Estes factos depõem no sentido de que o legislador criou uma situação de confiança.
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