TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 109.º Volume \ 2020

109 acórdão n.º 477/20 incapacidade do falecido em futuras ações de anulação; e (iii) não há nenhum interesse público discernível que justifique a aplicação imediata da lei nova em detrimento da tutela da confiança do requerente. Con- clui-se que a norma impugnada «é suscetível de consubstanciar uma retroatividade inautêntica ou aparente da lei, desrespeita o princípio constitucional da proteção da confiança e da segurança jurídica contidos no princípio do Estado de Direito Democrático (cfr. art. 2.º da CRP)». Em causa está a lesão da expectativa na continuidade de um regime processual de que resultava para o requerente uma vantagem em futuras ações de anulação. Daí tratar-se de uma questão de segurança jurídica e proteção da confiança. Não se trata – esclareça-se − de uma restrição do direito de ação, caso em que a questão de constitucionalidade relevaria, em primeira linha, do regime das restrições aos direitos, liberdades e garantias, mormente a proibição da retroatividade das leis restritivas consagrada no n.º 3 do artigo 18.º da Constituição. E não se trata porque, mesmo na ausência de sentença que verifique a existência da inca- pacidade, nada obsta a que o requerente, tendo legitimidade sucessória, procure anular negócios jurídicos celebrados pelo requerido, provando a incapacidade deste nos termos gerais. A aplicação imediata da lei nova limita-se a retirar ao interessado a oportunidade de beneficiar de uma presunção de incapacidade operativa nesse domínio, bem como um fundamento de anulação dos negócios prejudiciais ao requerido celebrados entre a publicidade da ação e a da interdição. É esse o único objeto pos- sível da expectativa. É incorreto falar-se aqui de um direito fundamental «de poder obter uma decisão sobre a alegada incapacidade do requerido», visto que a ação especial de interdição, visando a tutela dos direitos e interesses do interditando, é destituída de relevância própria ou intrínseca após a morte deste; o seu valor, a partir desse momento, é instrumental de interesses patrimoniais a que correspondem direitos de ação into- cados pela norma sindicada. 8. O princípio da proteção da confiança diz respeito à tutela das expectativas dos destinatários dos atos da autoridade pública. O Acórdão n.º 128/09, o leading case na matéria, densificou-o do seguinte modo, em estreita articulação com a jurisprudência constitucional anterior: «No Acórdão n.º 287/90, de 30 de outubro, o Tribunal estabeleceu já os limites do princípio da protecção da confiança na ponderação da eventual inconstitucionalidade de normas dotadas de «retroactividade inautêntica, retrospectiva». Neste caso, à semelhança do que sucede agora, tratava-se da aplicação de uma lei nova a factos novos havendo, todavia, um contexto anterior à ocorrência do facto que criava, eventualmente, expectativas jurídicas. Foi neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos de «retroactividade autêntica» e o tratamento a conferir aos casos de «retroactividade inautêntica» que seriam, disse-se, tutelados apenas à luz do princípio da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consa- grado no artigo 2.º da Constituição. De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais: a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente prote- gidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição). Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comporta- mentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas,

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