TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 109.º Volume \ 2020
103 acórdão n.º 477/20 pela norma aqui desaplicada (a que previa a possibilidade de prossecução da ação a solicitação do requerente após a morte do beneficiário) não só já vigorava desde 1 de 60. Setembro de 2013, data da entrada em vigor da anterior versão do n.º 1, do artigo 904.º, do Código de Processo Civil, aprovada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, como, inclusivamente, correspondia ao conteúdo do n.º 1, do artigo 957.º, do Código de Processo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezem- bro (alterado e retificado pela Lei n.º 6/96, de 29 de fevereiro e pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de setembro), que vigorou entre 1 de janeiro de 1997 e 1 de setembro de 2013, não poderemos deixar de considerar que a manu- tenção na ordem jurídica, por mais de 40 (quarenta) anos, de uma norma legal incontestada, se revela suscetível de criar nos cidadãos, e noutros agentes, fundadas expectativas de persistência e continuidade. 61. Aditaremos, ainda, que os comportamentos estatais suscetíveis de gerar nos privados expectativas de conti- nuidade respeitam a uma dimensão de concretização de um direito fundamental, o direito de acesso aos tribunais, proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. 62. Por outro lado, tais expectativas de continuidade – ao menos da continuação da aplicação do regime legal existente aos casos introduzidos em juízo antes da alteração legislativa – mostram-se legítimas, justificadas e razoáveis, na medida em que a solução legal alterada sempre se revelou pertinente, proba e ajustada à adequada consideração dos distintos interesses conflituantes, não se verificando qualquer injunção que impusesse, necessária e previsivelmente, a nova resposta legal. 63. Em terceiro lugar, no que concerne aos planos de vida estabelecidos pelos cidadãos ou outros agentes jurídicos, tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual, há, igualmente, que inferir que tal requisito se verifica, uma vez que os particulares, designadamente os que intervieram nos presentes autos, propuseram ações de interdição presumindo que as mesmas prosseguiriam os seus termos, ainda que os beneficiá- rios falecessem, desde que já se tivessem realizado os exames e os interrogatórios destes, o que, no caso vertente, é ilustrado pela manifestação do interesse na persistência do processo. 64. Por fim, verificados os três primeiros requisitos ou «testes», aqueles que respeitam a uma situação de confiança imputável ao legislador, cabe-nos procurar apurar se se encontra preenchido, igualmente, o último dos requisitos, qual seja, o da não ocorrência de razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa. 65. Quanto a este quarto «teste», podemos acrescentar que, da análise dos trabalhos preparatórios da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, não foi possível apurar qual o eventual interesse público que o legislador ordinário pretendeu promover com a alteração do conteúdo normativo do artigo 904.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. 66. Ou seja, no caso vertente, não só não se vislumbra qualquer interesse público eventualmente considerado pelo legislador ordinário que possa ser tido por prevalecente sobre as expectativas legítimas de continuidade do regime jurídico sobre as quais os particulares estabeleceram os seus planos de vida como, ainda que se admitisse que tal interesse se verificava, não seria difícil conceber uma solução legal, maxime uma norma de direito transi- tório, que, ainda assim, protegesse eficazmente aquelas expectativas, com o necessário respeito pelo princípio da segurança jurídica na sua dimensão de princípio da proteção da confiança. 67. Na verdade, sem pôr em causa a liberdade de conformação do legislador no que concerne à alteração da ordem jurídica sob escrutínio, ou seja, a liberdade de nela inscrever a norma que se acolhe na nova redação do n.º 1, do artigo 904.º, do Código de Processo Civil, a saber, a que se consubstancia na imposição da extinção da instância caso se verifique a morte do beneficiário da ação, facilmente seria concebível uma norma que estatuísse que nas ações propostas antes da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, se manteria em vigor a anterior formulação da referida norma e, consequentemente, falecendo o requerido no decurso do processo, mas depois de feitos o interrogatório e o exame, poderia o requerente pedir que a ação prosseguisse para o efeito de se verificar se existia e desde quando datava a incapacidade alegada. 68. Tendo, assim, em atenção tudo o que acabámos de explanar, não poderemos deixar de concluir que a inter- pretação normativa desaplicada não só constitui uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os seus destinatários não podiam contar como, igualmente, não se revela ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes.
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