TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
99 acórdão n.º 299/20 passando apenas a referir a venda ou dação em cumprimento do “local arrendado”; elevou de um para três anos o prazo mínimo de permanência como arrendatário; passou a abranger também os arrendamentos com prazo certo; e não acolheu a solução, que anteriormente se encontrava no n.º 2 do artigo 47.º da RAU, de mandar abrir licitação na hipótese de serem dois ou mais preferentes. Finalmente, a Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro – cujos preceitos integram a norma questionada no presente processo – deu nova redação ao artigo 1091.º, com destaque para as seguintes alterações: (i) o período mínimo de duração do arrendamento foi reduzido para dois anos [alínea a) do n.º 1); (ii) exigência de forma escrita para a comunicação da preferência ao arrendatário (n. os 4 e 7); (iii) alargamento para 30 dias do prazo para a declaração de preferência (n.º 4); (iv) densificação do conteúdo da comunicação para preferência na venda de coisas conjuntamente com outras (n. os 6 e 7); (v) e extensão do objeto de preferência a prédios não constituídos em propriedade horizontal (n. os 8 e 9)]. 7. Como é sabido, o direito de preferência legal – derivado diretamente da lei –, por vezes chamado “direito de prelação”, “direito de preempção” ou “direito de opção”, confere a certa pessoa a possibilidade de, em certas situações, adquirir uma coisa no caso do seu proprietário a pretender alienar e o preferente se dispuser a pagar a importância que um terceiro oferecer. Portanto, a essência do direito de preferência está na circunstância de se «atribui[r] ao respetivo titular prioridade ou primazia na celebração de determinado negócio jurídico, desde que ele manifeste vontade de o realizar nas mesmas condições (tanto por tanto) que foram acordadas entre o sujeito vinculado à preferência e um terceiro» (Manuel Henrique Mesquita, Obri- gações Reais e Ónus Reais, Coimbra, Almedina, 1990, p. 189). Pode dizer-se que os direitos legais de preferência são expressivos de certa forma de economia e expli- cativos das conceções jurídico-políticas vigentes em cada momento histórico, mostrando os verdadeiros estigmas da sociedade que favorece o seu aparecimento. Com efeito, a preferência legal começou por ser um meio de proteção de certos grupos, como a família, impedindo a intromissão de elementos estranhos, de modo a manter a unidade do património familiar. Com o trânsito para uma economia de mercado, que valoriza a livre circulação de bens e que associa a apropriação individual ao princípio da liberdade de concor- rência, a preferência de origem legal surge como instrumento de eliminação de conflitos entre direitos reais, permitindo recompor a propriedade desonerada sem sacrifício da paz social. E com a crescente intervenção estadual na vida económica e social, em que a propriedade passou a desempenhar uma “função social”, a preferência legal começou a servir interesses públicos distintos do simples direito de propriedade, como a empresa, trabalho, habitação, etc. No ordenamento jurídico português podemos encontrar direitos legais de preferência que prosseguem qualquer uma destas finalidades: (i) o direito de preferência legal de formação processual – a remissão (artigo 842.º do Código de Processo Civil) -, destinado a proteger a família do executado; (ii) o direito de prefe- rência dos comproprietários, dos co-herdeiros, dos proprietários do solo, de prédios onerados com servidão legal de passagem ou de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura (artigos 1409.º, 2130.º, 1535.º, 1555.º e 1380.º do Código Civil), destinado a extinguir situações não consentâneas com uma exploração económica mais racional dos bens; (iii) o direito de preferência do arrendatário urbano, com finalidade comercial, industrial, profissão liberal ou habitacional, e do arrendatário rural (artigos 1091.º do Código Civil e 31.º do Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13 de outubro), destinado a proteger as organizações produtivas, a estabilidade da habitação e o trabalho rural. No âmbito do arrendamento de prédios urbanos, o direito de preferência surge enquadrado num con- junto de medidas restritivas da liberdade contratual destinadas a proteger os arrendatários dos efeitos nega- tivos do carácter temporário da locação. A intervenção estadual neste domínio, em resposta aos problemas económicos e sociais subsequentes à primeira guerra mundial, iniciou-se com medidas legislativas que impu- seram a renovação obrigatória do arrendamento urbano em favor do arrendatário e restrições ao direito de denúncia do senhorio e à liberdade de se convencionar aumentos de rendas acima de determinados mon- tantes. Foi no contexto desse regime protetor dos “arrendamentos vinculísticos”, que compreendia como
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