TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020

740 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Mas interessa também nesta matéria – para além da interpretação estrita dos preceitos legais e de excer- tos da pouca jurisprudência existente relativa ao atual modelo de controle das contas dos partidos e das campanhas eleitorais pelo Tribunal Constitucional – compreender a natureza do ato da ECFP que verifica e declara a existência de irregularidades nas contas. 12. Para tal faz sentido passar em revista, sucintamente, o que a Constituição, as leis, a jurisprudência e a doutrina dizem sobre os atos administrativos passíveis de impugnação judicial. Antes, porém, há que verificar se nos encontramos perante um verdadeiro ato administrativo. Quase que o poderíamos fazer por exclusão de partes (como fazia alguma doutrina administrativa fran- cesa do século XIX). Não se trata, inquestionavelmente, de um ato legislativo, nem de um ato jurisdicional, nem, tão pouco, de um ato privado da Administração. Se dúvidas pudessem restar, acrescente-se que preen- che o conceito de ato administrativo defendido pela doutrina nacional mais citada: é um ato jurídico, uni- lateral, de natureza decisória, praticado no exercício do poder administrativo, que versa sobre uma situação individual e concreta, da autoria de um órgão da Administração Pública (Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, p.197). A definição legal de ato administrativo consta hoje do artigo 148.º do Código do Procedimento Admi- nistrativo (CPA). Aí se escreve que, para os efeitos do código, se consideram atos administrativos «as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos numa situação indi- vidual e concreta». Como se esperaria, a definição legal é mais sucinta e menos analítica do que a definição doutrinária, mais preocupada com aspetos explicativos. Mas, para além da omissão do carácter jurídico e do carácter unilateral – que se podem, de alguma forma, ter por implicitamente cobertos pela natureza decisória –, apresenta apenas uma diferença significativa: a omissão da autoria – um órgão da Administração Pública. Trata-se, de resto, de um elemento que alguma doutrina vinha abandonando, enfatizando o elemento mate- rial – o exercício de poderes jurídico-administrativos – e reconhecendo a perda de relevo que as alterações da organização administrativa pública provocaram no elemento orgânico (por isso mesmo, Mário Aroso de Almeida escreveu que «o artigo 148.º do Código do Procedimento Administrativo veio esclarecer que os atos administrativos não têm necessariamente de ser praticados por órgãos da Administração, mas antes podem ser praticados por entidades de qualquer natureza no exercício de poderes jurídico-administrativos (…) A definição de ato administrativo introduzida pelo artigo 148.º do CPA parece-nos adequada, na medida em que confere coerência à figura, deixando de nela incluir realidades heterogéneas e, desse modo, permite tam- bém imprimir um maior grau de coerência ao regime procedimental e substantivo que o CPA lhe faz corres- ponder» ( Teoria Geral do Direito Administrativo, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, pp. 250 e 253-254). Assente que se trata de um ato administrativo, vejamos se apresenta a característica da recorribilidade (ou impugnabilidade) judicial. A Constituição da República Portuguesa (CRP) dispõe, na redação do n.º 4 do artigo 268.º atualmente em vigor e que data da revisão constitucional de 1989, que «é garantido aos administrados tutela jurisdi- cional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhe- cimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem (…)». Não é difícil perceber que, no plano constitucional, a condição primeira dos atos administrativos pas- síveis de impugnação judicial é a sua lesividade. Como se escreveu num aresto do Tribunal Constitucional fundamental nesta matéria, ponderando a substituição do conceito de definitividade do ato administrativo recorrido pelo de lesividade deste – substituição em que muitos administrativistas viram a morte de um conceito, que ligava a impugnabilidade a uma circunstância típica da Administração, e o nascimento, em sua substituição, de outro conceito, que a articulava com as circunstâncias específicas da situação do admi- nistrado – «objetivamente considerada, a evolução normativa revela a troca de um entendimento formal e conceptualista do direito de acesso aos tribunais administrativos por uma visão material, assente numa ideia

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