TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
690 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 8 – Desde o dia em que aterrou nos Açores, a pessoa visada pela norma, apesar de falar telefonicamente com o cônjuge, não pôde ter contacto presencial com este, nem com qualquer outra pessoa. 9 – Apenas viu o cônjuge uma vez, estando este na via pública e a pessoa visada pela norma na varanda do quarto. 10 – Não lhe é permitido circular nos corredores do hotel nem em qualquer outra zona do mesmo, para além do seu quarto, havendo indicação de ronda por parte de agente da PSP de modo aleatório. 11 – Todos os passageiros que não apresentavam qualquer sintoma e cuja temperatura corporal era con- siderada normal eram encaminhados de autocarro para unidade hoteleira previamente determinada – Hotel (...) ou Hotel (...) – sendo informados de que tinham de permanecer confinados ao quarto que lhes era atri- buído durante o período de 14 dias e de que eram vigiados diariamente, por contacto telefónico. 12 – Não lhe foi permitida a saída do quarto, nem o contacto com outras pessoas, designadamente familiares, amigos ou demais hóspedes. 13 – As refeições eram transportadas num carrinho por um empregado do hotel, que batia à porta, após o que se afastava, permitindo ao hóspede recolher a refeição, recolhendo em seguida o carrinho. 14 – Qualquer exercício físico teve de ser efetuado no quarto, não sendo permitido o acesso ao exterior do hotel nem aos demais espaços desse mesmo hotel, aqui se incluindo os corredores. Medidas como as que se acabam de traçar – elencadas no contexto já referido no começo deste item – têm, evidentemente, um impacto significativo (o que quase corresponde a um eufemismo) na liberdade dos cidadãos [“[o] gozo do direito à liberdade pessoal é afetado pela imposição de quarentena obrigatória aos passageiros provenientes do estrangeiro e pela imposição de isolamento a pessoas suspeitas ou confirmadas com teste positivo de infeção pelo novo coronavírus” – Alessandra Spadaro, “COVID-19: Testing the Limits of Human Rights” , in European Journal of Risk Regulation, European Journal of Risk Regulation , 11(2), pp. 317-325. DOI: https://doi.org/10.1017/err.2020.27 ] . Em coerência com a jurisprudência constitucional anterior, impõe-se concluir que a maior parte das restrições descritas – mas, acima de tudo, o seu conjunto – corresponde, inequivocamente (e recuperando a classificação do Acórdão n.º 479/94), a uma “privação total da liberdade”. Assim se conclui, seja pela verificação de que a norma, “na sua máxima dimensão abstrata”, implica que o visado “fica circunscrito [a um] espaço confinado […], de todo impedido de circular e de livremente se movimentar” (expressões do referido Acórdão), seja ao constatar, por comparação, que a execução de uma medida como a descrita em muito pouco [e, descontada a envolvência (um quarto de hotel) porventura mais “amigável”, em nada de substancialmente significativo] se afasta do que resultaria da aplicação de uma (hipotética) pena curta de prisão, porventura até com aspetos mais gravosos (por exemplo, a falta de acesso a um espaço comum para exercício físico), seja até, por maioria de razão, face ao que se concluiu no citado Acórdão n.º 479/94, no qual se qualificou como inequívoca privação da liberdade a circunscrição a um espaço confinado até 6 horas (quando no caso dos autos está em causa um período até 56 vezes superior a esse). Em suma, as normas sub judice preveem medidas de privação da liberdade, de sinal contrário à previsão do artigo 27.º, n.º 2, da Constituição e ao direito à liberdade consagrado no n.º 1 do mesmo artigo, na sua vertente de liberdade pessoal. 2.2.4. Como vimos ( supra , 2.2.1.), todas as normas disciplinadoras de um direito liberdade ou garan- tia carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República, exigência que “[…] ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito” (Acórdão n.º 362/11). Assim, verificando-se que as normas sub judice estabelecem medidas que privam da liberdade as pessoas por ela visadas, contra o previsto no artigo 27.º da Constituição ( supra , 2.2.3.), é evidente que a respetiva matéria se encontra abrangida pela reserva de competência legislativa prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição – competência que não foi concretamente delegada e só o poderia ser no Governo [e não no Governo Regional – cfr. artigos 227.º, n.º 1, alínea b) , e 228.º, n.º 1, da Constituição].
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