TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
685 acórdão n.º 424/20 De um modo revelador, o tribunal recorrido afirma recusar a aplicação das normas “[…] nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores” – obrigação que decorre das indicadas resoluções e não do RJSPCRAA. Consequentemente, o presente recurso não pode ter por objeto as normas dos artigos 9.º a 12.º do RJSPCRAA, visto que não se verifica, substancialmente, quanto a elas, a previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – não foi recusada a sua aplicação por inconstitucionalidade. Pelas mesmas razões, mutatis mutandis , o objeto do recurso não abrange as normas contidas nos pontos 5 e 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020, de 27 de março. Sendo respeitantes à contratação pública e à despesa, apesar de verem a sua aplicabilidade necessariamente prejudicada pelo afastamento das normas contidas nos pontos precedentes, elas não foram, rigorosamente, atingidas pelo juízo de censura jurídico-constitucional afirmado na decisão recorrida. Resulta do exposto que constituem objeto do recurso as normas contidas nos pontos 1 a 4 e 7 da Reso- lução do Conselho do Governo n.º 77/2020 e nos pontos 3, alínea e) , e 11 da Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passa- geiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores. 2.2. Na decisão recorrida, considerou-se que as normas objeto do recurso violam o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b) , da Constituição, porquanto, e em síntese, o Governo Regional “[…] não tem compe- tência para restringir direitos, liberdades e garantias, mesmo tendo em conta o tempo de pandemia que vive- mos […]” e “[…] com a cessação do estado de emergência, ao abrigo do qual surgiu, e encontrou respaldo, a Resolução n.º 77/2020, cessaram as restrições que foram impostas a direitos constitucionais, como o direito à liberdade, os quais readquiriram a sua plenitude”. São inequívocos os dados de facto relevantes para tal afirmação: o requerente da providência de habeas corpus foi sujeito a confinamento obrigatório em 10 de maio de 2020, altura em que já não vigorava a declaração do estado de emergência (declarado inicialmente pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, entre 19 de março de 2020 e 2 de maio de 2020, renovado pelo Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril, entre 3 de abril de 2020 e 17 de maio de 2020, e novamente renovado pelo Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, de 17 de abril, entre 18 de abril de 2020 e 2 de maio de 2020, após o que vigorou a situação de calamidade declarada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020). Assim, não concorrem para o enquadramento jurídico-constitucional do caso dos autos as normas relativas ao estado de emergência. Por outro lado, a “situação de calamidade” não tem relevância consti- tucional para efeitos de suspensão de direitos, liberdades e garantias, relevando para esse efeito apenas a “calamidade” que funda a declaração do estado de emergência (artigo 19.º, n.º 2, da Constituição) – “[o] estado de emergência constitucional é declarado com o objetivo de promover o regresso à normalidade.a situação de calamidade administrativa visa o mesmo objetivo, mas, em vez de atuar por via da suspensão dos direitos fundamentais, persegue-o no âmbito de um quadro legislativo que envolve restrições espe- cíficas e predefinidas desses mesmos direitos” (Miguel Nogueira de Brito, “Modelos de emergência no direito constitucional”, in revista e-Pública , vol. 7, n.º 1, abril de 2020, disponível em www.e-publica.pt, p. 8; sobre alguns problemas normativos em estado de emergência, vide, ainda, Pedro Lomba, “Consti- tuição, estado de emergência e administração sanitária: alguns problemas”, in revista e-Pública, cit., pp. 28/43, e Catarina Santos Botelho, “Estados de exceção constitucional: estado de sítio e estado de emer- gência”, in Carla Amado Gomes e Ricardo Pedro (eds.), Direito Administrativo de Necessidade e de Excep- ção , Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 2020, pp. 9/57, disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3619217 ). Perante este quadro, vejamos se a inconstitucionalidade orgânica afirmada na decisão recorrida deve ter-se por verificada.
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