TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
643 acórdão n.º 422/20 é possível obliterar, no quadro da União Europeia, que o primado constitui um princípio básico do direito constitucional europeu, desenvolvido desde cedo pelo Tribunal de Justiça, tendo o projeto de Constituição europeia se limitado a verbalizá-lo” ( A Constituição Portuguesa Num Contexto Global, cit., pp. 381/382). Ou seja, constituindo o primado “[…] um requisito imposto pela essência do Direito da União”, a referida Declaração 17 “[…] não cria nada de novo para o Direito da União [, limitando-se a Conferência a lem- brar] o que já existe na jurisprudência do TJUE, isto é, ela limita-se a ‘codificar’ direito já formado por força dessa jurisprudência [e isso sucedeu por vontade de todos os Estados-membros participantes na Conferência Intergovernamental que, sintomaticamente, se reviram nessa enunciação do estado da questão do primado sem qualquer declaração divergente quanto ao conteúdo dessa Declaração, contrariamente ao que sucedeu noutros casos recolhidos no Tratado de Lisboa]”, passando a integrar o DUE “[…] nos termos definidos [por ele próprio]” (Fausto de Quadros, Direito da União Europeia, cit., pp. 538/540). 2.6.2. Todavia – e retomamos o texto antes mencionado de José Manuel Cardoso da Costa –, se com o Tratado de Lisboa, em rigor, “[…] nada se alterou do lado do direito comunitário […]” quanto ao princípio do primado, “[j]á […] no plano do direito constitucional português, ocorreu algo de muito significativo, no tocante a essa matéria. É que, na perspetiva da conclusão com sucesso (que não veio a verificar-se) do processo ratificativo do Tratado Constitucional e da entrada em vigor deste, o legislador constitucional por- tuguês entendeu ir antecipadamente ao encontro do que aquele vinha agora proclamar, de modo tão enfático no seu artigo I-6.º (e, com isso, afastar de antemão as dificuldades que o mesmo viesse suscitar) – o que fez, em 2004, com a inserção, no artigo 8.º da Constituição, de um novo preceito (o n.º 4) […]. O Tratado que instituía uma Constituição para a Europa veio a soçobrar; mas o preceito da Constituição portuguesa, a que confessadamente ele deu origem, ficou – donde que, de entre as Constituições dos Estados membros […], essa seja a que encara de modo mais direto (para não dizer a única a fazê-lo desse modo) a questão da receção do direito da União na ordem interna e, pela devolução feita para o que esse mesmo direito entende a tal propósito, assume o primado dele. […] Com efeito, se se garante a aplicação interna do direito da União «nos termos» pelo mesmo «definidos», então, e face à interpretação e aplicação que dele faz o Tribunal de Justiça, está-se, decerto, a garantir o seu primado, e não se vê como recusar a extensão deste, como questão de princípio, também àquelas normas; só que, ficando ressalvado, por outro lado, que a aplicação do direito da União «in foro domestico» não pode conduzir, em qualquer caso, ao desrespeito dos «princípios fundamentais do Estado de direito democrático», isso mais não significa senão que o primado haverá de ceder face ao que afinal representa o núcleo duro e irredutível da Constituição ” (Constituição Portuguesa e Direito da União Europeia…, cit., p. 9, itálico acrescentado). Nesse contexto podemos falar em alguma especificidade da questão do primado (do primado referido às normas constitucionais internas) no plano nacional. Todavia, para sermos inteiramente rigorosos na valo- ração dessa particularidade do texto constitucional nacional, decorrente da introdução do n.º 4 do artigo 8.º, haverá que ter presente, com um certo sentido de fonte inspiradora da solução alcançada na revisão de 2004, a precedência das definições jurisprudenciais em Itália (1973/ Frontini ) e na Alemanha (1986/ Solange II e subsequente jurisprudência, já referida, do Tribunal Constitucional alemão), cuja inspiração, em alguns traços da sua essência significativa, não podemos deixar de pressentir na construção do referido n.º 4. Com efeito, foi a interpelação pelo entendimento absoluto do princípio do primado, decorrente dos acórdãos Costa Enel e Internationale Handelsgesellschaft , que originou a construção e o aprofundamento, por via juris- prudencial, tanto em Itália como na Alemanha, do modelo estratégico de “diálogo” entre os Tribunais Cons- titucionais nacionais e o TJUE quanto à pretensão de absolutizar a projeção interna do primado do DUE. A observação dessa realidade propiciou em 2004 ao legislador de revisão, os dados essenciais da definição constitucional dessa questão; a expressividade desta não deixou de assentar numa espécie de consentimento informado, pelas vicissitudes relacionais ilustradas por aquelas outras experiências.
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