TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020

642 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Como também referimos, esta disposição não veio a integrar o Tratado de Lisboa, o instrumento decor- rente da interrupção e posterior abandono do processo de ratificação da Constituição Europeia. Ficou dessa intenção, com um valor vinculativo que não deixa de ser discutido (cfr. Carlos Blanco de Morais, Justiça Constitucional, tomo II, 2.ª edição, Coimbra, 2011, pp. 660/661) mas que reflete a forte intencionalidade dessa pretensão, a designada Declaração 17, anexada à ata final da conferência intergovernamental que ado- tou o Tratado de Lisboa, “[…] sobre o primado do direito comunitário”, na qual “[a] Conferência lembr[ou] que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tra- tados e o direito adotado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados-membros, nas condições estabelecidas na referida jurisprudência”, complementando esta declaração a transcrição do “Parecer do Serviço Jurídico do Conselho”, de 22 de junho de 2007, com o seguinte teor: “[d]ecorre  da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o primado do direito comunitário é um princípio fundamental desse mesmo direito. Segundo o Tribunal, este princípio é inerente à natureza específica da Comunidade Europeia. Quando foi proferido o primeiro acórdão desta jurisprudência constante (acórdão de 15 de julho de 1964 no processo 6/64, Costa contra ENEL ), o Tratado não fazia referência ao primado. Assim continua a ser atualmente. O facto de o princípio do primado não ser inscrito no futuro Tratado em nada prejudica a existência do princípio nem a atual jurisprudência do Tribunal de Justiça” ( Jornal Oficial da União Europeia , C-202, Ano 59, 7 de junho de 2016, p. 344). Embora a introdução no nosso texto constitucional do n.º 4 do artigo 8.º (e também da frase intercalada no n.º 6 do artigo 7.º: “[…] com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático […]”), tenha decorrido de uma revisão constitucional a cuja intencionalidade não foi estranha – bem pelo contrário – a consagração do princípio do primado na projetada Constituição Europeia, não perdeu essa opção de revisão base de sustentação, por via do abandono do projeto de um texto constitucional europeu, com a consequente permanência fora dos Tratados do princípio do primado. As vicissitudes posteriores do processo que determinou a revisão constitucional que procedeu à introdução daquele n.º 4 no texto do artigo 8.º não transformaram a norma gerada nesse contexto num despojo de algo que não se concretizou. Bem pelo contrário! Valeu e vale, essa opção, em função de uma realidade pré-existente ao projeto de Constituição Europeia e que subsiste inteiramente sem esta (cfr. Fausto de Quadros, Direito da União Europeia, cit., pp. 536/538), estando em causa no n.º 4 do artigo 8.º um elemento identitário do Direito da União – o princípio do primado – que permanece vivo e atuante, independentemente da natureza da fonte que lhe der (deu) vida nesse quadro de referência. É com este sentido que se afirma, quanto à projeção da intencionalidade do artigo I-6.º da Constituição europeia no estado da questão do primado no contexto do Tratado de Lisboa, que “[n]ada […] se alterou, do lado do direito comunitário, quanto à fonte «formal» (que continua a ser a jurisprudência) do princípio do primado – sem embargo de não poder ser negado à Declaração [à Declaração 17, acima transcrita] o substan- cial efeito de um reforçado reconhecimento do mesmo princípio, a par do da eliminação de qualquer dúvida acerca da sua vigência” [José Manuel M. Cardoso da Costa, “Constituição Portuguesa e Direito da União Europeia (Quatro apontamentos)”, in Liber Amicorum Fausto de Quadros , Vol. II, Coimbra, 2016, p. 9]. Assim, como observa Rui Medeiros, resumindo a perspetivação da questão, “[o] facto de uma dispo- sição semelhante àquela que constava do artigo I-6.º do Tratado que estabelecia uma Constituição para a Europa ‘não constar dos Tratados, na redação atual que lhes foi dada pelo Tratado de Lisboa, não significa que tenha havido alguma alteração fundamental à orientação seguida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça. Pelo que as doutrinas do primado, do efeito direto e da responsabilidade dos Estados pelo incum- primento do Direito da União Europeia continuam a ser peças essenciais do seu funcionamento’ [a citação dentro da citação é de Jónatas E. M. Machado, ob. cit. p. 65]. E, sob pena de se incorrer numa visão legalista e formalista que ignore o acquis communautaire e ‘tudo o que efetivamente ocorreu no processo jurídico da integração desde a década de sessenta do século XX’ [ idem , Maria Lúcia Amaral, ob. cit. , pp. 422/423], não só não se pode ignorar em geral o papel da jurisprudência na descoberta do sentido do direito, como não

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