TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020

641 acórdão n.º 422/20 […] uma Comunidade de duração ilimitada, dotada […] de poderes reais resultantes de uma limitação de competências ou de uma transferência de atribuições dos Estados para a Comunidade […]”. É importante situar esta afirmação no tempo, revelando o seu contexto significativo (o da Comunidade Económica Euro- peia em 1964), assente na ideia de que a construção e o funcionamento do mercado comum visado pelos Estados-membros no ato fundacional tinha como condição indispensável a uniformidade da interpretação e aplicação do então Direito Comunitário. A prevalência do direito ordinário interno sobre o DUE, segundo a regra de conflitos comum, lex posterior derogat legi priori (como vimos, foi este o problema com o qual a juris- dição constitucional italiana confrontou a jurisdição comunitária em Costa c. Enel ), punha (põe) em causa tal condição, frustrando o objetivo dos Estados – qual venire contra factum proprium – ao convencionarem o exercício em conjunto de determinadas competências, ou mesmo ao alocarem algumas destas a instituições da União. Todavia, a referenciação do primado ao crescendo de áreas temáticas abarcadas pelo aprofundamento do processo de integração europeia colocou novos desafios à projeção do princípio nos elementos idiossincráti- cos das Constituições nacionais. Esse fenómeno correspondeu, no caso português, ao contexto do apareci- mento e da evolução do n.º 6 do artigo 7.º da CRP. Com efeito, este foi introduzido (com a seguinte redação: “Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica e social, convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à construção da união europeia”) pela terceira revisão constitucional (Lei Constitucional n.º 1/92, de 25 de novembro), visando permitir a aprovação e ratificação do Tratado da União Europeia (Tratado de Maastricht, de fevereiro de 1992). Sob o impulso do Tratado de Amsterdão (que entrara em vigor em maio de 1999), a quinta revisão constitucional (Lei Constitucional n.º 1/2001, de 12 de dezembro), introduziu nesse n.º 6 os incisos respeitantes à realização de um espaço de liberdade, segurança e justiça e à convenção de exercí- cio dos poderes necessários à construção europeia, alternativamente, “em comum ou em cooperação”. Pela sexta revisão constitucional (Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24 de julho), além da referencia, de pendor limitativo ao aprofundamento da construção da União, ao respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, sinalizou-se que a convenção de exercício dos poderes necessários à construção e aprofundamento do projeto europeu poderia traduzir-se na alocação desse exercício às instituições da União. Daí que se considere, de seguida no artigo 8.º, nos respetivos n. os 2, 3 e 4 – e muito em especial neste último –, a incidência que essa opção, assumida nos trechos assinalados do artigo 7.º, apresenta na configuração da ordem jurídica nacional, em função da necessária interação desta com um espaço dotado de uma ordem jurí- dica própria, e de um Direito próprio, o qual, num processo caracteristicamente autopoiético, se definiu – e já há muito se definia quando Portugal aderiu à Comunidade Económica Europeia em 1986 – como diretamente projetado nas ordens jurídicas dos Estados integrantes da União e, em todas as situações relacionais com estas, como prevalecente, inclusive quando essa relação colocasse em confronto o DUE e as normas de nível hierár- quico mais elevado dos Estados-membros: as normas dotadas de estalão constitucional. Dos trechos dos artigos 7.º e 8.º da CRP acima transcritos assume particular relevo, quanto à temática especificamente convocada pelo presente recurso, o n.º 4 do artigo 8.º, cuja introdução no texto constitucio- nal ocorreu, como já se disse, com a revisão de 2004, tendo em vista a compaginação da Constituição com o processo de elaboração de uma Constituição Europeia então em curso. Aludimos anteriormente, no item 2.3.1., à tentativa, que viria a fracassar, de criação de um texto com essa natureza por via do “Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa”, e à circunstância do texto constitucional aprovado através desse instrumento enunciar expressamente o princípio do primado, no res- petivo artigo I-6.º, com o seguinte teor: “[a] Constituição e o direito adotado pelas instituições da União, no exercício das competências que lhe são atribuídas, primam sobre o direito dos Estados-membros” (relativa- mente a este texto, a ata final da Conferência dos representantes dos Governos dos Estados-membros, incluía a seguinte declaração: “[…] A Conferência constata que o artigo I-6.º reflete a jurisprudência existente do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e do Tribunal de Primeira Instância”).

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