TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020

638 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL do princípio do primado na dimensão que confronta o DUE com o direito ordinário interno – adiante posi- cionaremos esta mesma norma face às disposições constitucionais nacionais (que também se projetam nesse trecho inicial, embora com as especificidades que aí referiremos)  – , sendo que essa dimensão do primado (a referida ao direito ordinário nacional) está, pela sua própria natureza, aquém da incidência do trecho final do mesmo n.º 4 (que corresponde ao segmento da norma que interessa à economia decisória deste recurso). De facto, há que entender o inciso final – “[…] com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático” – como consubstanciando uma exceção à (um afastamento da) limitação (um dos contralimites à restrição, empregando a expressão cunhada na doutrina italiana – controlimiti –, na sequência do acórdão Frontini , proferido pelo Tribunal Constitucional em 1973, expressão cujo sentido apresenta um sugestivo paralelismo com o segmento final do n.º 4 do artigo 8.º), decorrente do trecho inicial da mesma norma: corresponde este ao limite depois reduzido, na sua projeção inibitória do Direito nacional, pelo mencionado inciso final do n.º 4. Contém o segmento inicial da norma, pois, o que corresponde à aceitação do primado do Direito da União Europeia (o primado expressa o DUE nos seus próprios termos), valendo o segmento final como afastamento, em determinadas condições, dessa primazia. Como observa Maria Lúcia Amaral, a “[…] natureza sui generis [do DUE] […] que, não sendo direito criado pelos órgãos do Estado português, vigora na ordem interna de acordo com os princípios do ‘efeito direto’ e do ‘primado’, é reconhecida pela Constituição nos n. os 3 e 4 do artigo 8.º. O n.º 3 reconhece expres- samente o princípio do efeito direto; e o n.º 4 reconhece implicitamente o princípio do primado, pois que diz que ‘[a]s disposições dos tratados e das normas emanadas das (…) instituições (…) vigoram na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União (…)’. Ora, […] o Direito da União não ‘define’ apenas o ‘termo’ do efeito direto das suas próprias normas; determina ainda que tais normas gozem de supremacia sobre quaisquer normas internas que com elas conflituem. O princípio do primado está, pois, aqui, implici- tamente reconhecido. Ao aceitar a primazia e o efeito direto do direito europeu no seu próprio ordenamento interno – e ao fazê-lo depois de ter deixado claro que o Direito Internacional só vigora em território por- tuguês em virtude de um ato de reconhecimento estadual – a CRP está, portanto, a reconhecer e a aceitar as consequências jurídicas decorrentes do compromisso assumido no artigo 7.º, n. os 5 e 6. Por causa deste compromisso, vigora na ordem portuguesa um direito que não é estadual nem internacional: é sui generis ” ( A Forma da República, Coimbra, 2012, p. 415). Note-se que a qualificação do DUE como portador de uma natureza específica – sui generis –, total- mente distinta do Direito Internacional Público, consta, tanto do acórdão Van Gend en Loos , como do acórdão Costa c. ENEL ( ibidem , p. 414, nota 499). No primeiro, logo em 1963, na que é considerada a passagem mais famosa de uma decisão do Tribunal de Justiça (cfr. Koen Lenaerts, José A. Gutiérrez-Fons, “A Constitutional Perspetive”, in Oxford Principles of European Union Law, cit., p. 105); expressa-se esse caráter peculiar afirmando “[constituir a União Europeia] uma nova ordem jurídica de direito internacional, a favor da qual os Estados limitaram, ainda que em domínios restritos, os seus direitos soberanos, e cujos sujeitos são não só os Estados-membros, mas também os seus nacionais”, ordem que assenta num sistema de normas, “[…] autónomo, autossuficiente e coerente […]” ( ob. e loc. cit. ), sendo esta asserção retomada a respeito do princípio do primado na decisão Costa c. Enel . Aliás, relativamente à ordem jurídica portuguesa, já antes da introdução do n.º 4 do artigo 8.º da CRP, pela sexta revisão constitucional de 2004, o primado do DUE era invariavelmente afirmado – como refor- çadamente continuou a ser depois de 2004 – no confronto com as normas nacionais infraconstitucionais, com base nos n. os 1, 2 ou 3 do artigo 8.º [neste sentido, Patrícia Fragoso Martins, “O Primado do Direito da União”, in Princípios Fundamentais de Direito da União Europeia. Uma abordagem jurisprudencial, cit., p. 58; Rui Manuel Moura Ramos, “O Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa e a Posição dos Tribunais Constitucionais dos Estados-membros no Sistema Jurídico e Jurisdicional da União Europeia”, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Vol II, Coimbra, 2005, p. 379/384 e nota 35, na p. 381/382 (trata-se de texto do final de 2003);  Maria Helena Brito, “Relações entre a ordem jurídica comunitária e a ordem jurídica nacional: desenvolvimentos recentes em direito português”, in

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