TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020

637 acórdão n.º 422/20 margens de sobreposição às outras ordens – dos Estados-membros à União; desta àqueles –, a funcionalidade do relacionamento decorrente da integração, como realidade antagónica da desagregação (eventualidade sempre possível e, aliás, já concretizada com o Brexit ), só pode decorrer de uma dinâmica baseada em fatores e práticas que induzam algum tipo de coerência sistémica, assente em algo diverso de uma integração nor- mativa hierarquizada. Capta-se desta forma a essência de uma vontade de coexistência no seio da União Europeia, no essencial assumida pelos agentes relevantes desse processo de interação, através da qual – e seguimos a caraterização deste fenómeno por Stephen Weatherill –, “[e]m vez de uma compreensão vertical de autoridade, com o Direito da União no topo, [emerge] um padrão horizontal, através do qual, tanto a União Europeia como as ordens jurídicas nacionais […], reivindicam espaços próprios de autoridade exclusiva, cuja construção é perfeitamente consistente dentro da sua própria lógica, sendo, todavia, inconsistente com a lógica afirmativa simétrica reclamada pela outra parte. E, indiretamente, através de diversas formas de diálogo, partilham as duas ordens as suas preocupações, induzindo cooperação mútua […]”. É assim que “[…] coexistem na Europa afirmações, inconciliáveis, de autoridade constitucional exclusiva, que não carecem, todavia, de con- ciliação [podendo subsistir paralelamente na sua assertividade], enquanto a competição gerada entre essas ordens não visar uma finalidade destrutiva. Trata-se este, porém, de um modelo exigente. O seu sucesso depende, em grande medida, da sensibilidade de todos os atores envolvidos aos valores e ansiedades dos outros […]” [ Law and Values in the European Union, cit., p. 247]. Note-se que o TJUE, no acórdão Les Verts (de 23 de abril de 1986, proferido no processo C-294/83), atribuiu expressamente aos Tratados a natureza de uma Constituição, afirmando representar “[…] a Comu- nidade Económica Europeia […] uma comunidade de direito, na medida em que nem os seus Estados- -membros nem as suas instituições estão isentos da fiscalização da conformidade dos seus atos com a carta constitucional de base que é o Tratado […]” (ponto 23 da decisão). Esta afirmação, tomada à letra, esgota-se no exato plano do caso concreto que a determinou: uma disputa de competências entre instituições comu- nitárias da qual resultou a construção pelo Tribunal de uma competência própria – não decorrente (então, estávamos antes de Maastricht ) da letra do Tratado – para fiscalizar atos do Parlamento Europeu. 2.5. No presente recurso, por via da questão de inconstitucionalidade construída pela recorrente, somos confrontados com a dimensão específica da questão do primado que relaciona as normas de DUE – que, nos seus próprios termos, se nos apresentam como diretamente aplicáveis e prevalecentes – com as normas cons- titucionais nacionais, sendo este o significado da questão de constitucionalidade apresentada pela recorrente. Somos confrontados, assim, com uma dimensão do problema do primado que apresenta traços radicalmente distintos daquela que confrontaria o DUE com o Direito ordinário interno dos Estados. Devemos, pois – logo à partida –, separar inequivocamente as duas questões. 2.5.1. Com efeito, no que diz respeito às normas de Direito nacional sem natureza constitucional ( rectius , ao Direito ordinário interno), o princípio do primado do DUE é recebido no artigo 8.º, n.º 4 da CRP. Consequentemente, as hipotéticas sobreposições de normas surgidas nesse espaço (referimo-nos, obviamente, ao espaço legítimo de preempção temática pelo DUE) resolvem-se – expressemo-lo desta forma, reforçando a força da asserção – afastando o direito nacional, fazendo atuar na sua essência significativa o princípio do primado, nos exatos termos fixados em 1964 pelo acórdão Costa c. ENEL .  Não se refere o presente recurso, pois, à dimensão, que podemos qualificar como básica e evidente, do princípio do primado, correspondente ao confronto das normas internas de direito ordinário (infraconsti- tucional) dos Estados-membros com o DUE. Essa questão está inequivocamente resolvida na nossa ordem jurídica pelo n.º 4 do artigo 8.º da CRP, ao estabelecer que “[a]s disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das suas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”. É que esta norma vale, desde logo, com o sentido de aceitação constitucional

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=