TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
636 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL sentido de que, no âmbito de um processo penal por infrações relativas ao IVA, impõe ao juiz nacional que se abstenha de aplicar disposições internas do direito substantivo nacional em matéria de prescrição que obstem à aplicação de sanções penais efetivas e dissuasoras num número considerável de casos de fraude grave, lesiva dos interesses financeiros da União Europeia, ou que prevejam prazos de prescrição mais curtos para os casos de fraude grave lesiva dos referidos interesses do que para os casos de fraude lesiva dos interesses financeiros do Estado-membro em causa, a menos que essa não aplicação implique uma violação do princípio da legalidade dos crimes e das penas, em razão da falta de precisão da lei aplicável ou devido à aplicação retroativa de uma legislação que impõe condições de incriminação mais severas do que as vigentes no momento em que a infração foi cometida ” (itálico acrescentado). É correto assinalar que a matização introduzida pelo TJUE, que acabámos de destacar no trecho dis- positivo da decisão M.A.S. , sendo construída com base nos pressupostos próprios do DUE, referenciados ao tempo da prolação da decisão Taricco I (cfr. o respetivo parágrafo 45, indicando que em 2015 se estava perante matéria ainda não objeto de harmonização, a qual só viria a ocorrer em 2017), envolveu certa con- textualização, por reflexo de uma incidência na ordem jurídica nacional, do princípio do primado, entendido este nos impressivos termos decorrentes da jurisprudência identitária do TJUE. Todavia, são diversos os exemplos do processo de construção em camadas assertivas do princípio do primado pelo TJUE, procedimento no qual facilmente observamos um propósito de blindagem do princípio face aos Direitos nacionais. Vejam-se, como exemplos dessa prática, os acórdãos de 27 de junho de 1991 (proc. n.º C-348/89, Mecanarte c. Chefe do Serviço da Conferência Final da Alfândega do Porto ) e de 18 de julho de 2007 (proc. n.º C-119/05, Lucchini ). No primeiro (acórdão Mecanarte ) decidiu-se que “[u]m órgão jurisdicional nacional, ao qual tenha sido submetido um litígio relativo ao direito comunitário, e que verifi- que a inconstitucionalidade de uma disposição nacional, não se encontra privado da faculdade ou dispensado da obrigação, previstas no artigo [267.º TFUE], de submeter ao Tribunal de Justiça questões relativas à inter- pretação ou à validade do direito comunitário pelo facto de esta verificação estar sujeita a recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional. […]”). Na segunda decisão (acórdão Lucchini ), considerou o TJUE opor-se “[…] o direito comunitário […] à aplicação de uma disposição do direito nacional que pretende consagrar o princípio da força do caso julgado, como o artigo 2909.º do Código Civil italiano, quando a sua aplicação obsta à recuperação de um auxílio de Estado concedido em violação do direito comunitário […]” (cfr. Koen Lenaerts, Ignace Maselis, Kathleen Gutman, EU Procedural Law , cit., pp. 13/14, 65/67, 109/110, 148/149). Porém, não obstante a expressividade da constante reafirmação do primado pelo TJUE, não deixamos de observar, por parte deste, concretamente em situações de impasse com jurisdições constitucionais nacio- nais ou em casos que pressagiam o eclodir de um grave conflito nesse quadro relacional, decisões construídas de molde a propiciar algum tipo de acomodação à afirmação pelas jurisdições constitucionais nacionais da subsistência de espaços de autonomia própria no relacionamento com o DUE, intangíveis à projeção abso- luta do princípio do primado. Constitui tal prática, que é paradigmaticamente ilustrada pela decisão Taricco II – do mesmo modo que constitui a prática conciliatória equivalente da generalidade das jurisdições cons- titucionais nacionais –, uma caraterística central da dinâmica relacional entre o TJUE e os Tribunais Cons- titucionais dos Estados-membros, testemunhando a prevalência, de parte a parte, de práticas de resolução dialógica da conflitualidade intrinsecamente envolvida num relacionamento complexo e no qual persistem pontos de atrito. 2.4.1. É comum identificar o fenómeno da interação do DUE com as normas constitucionais nacio- nais como correspondendo “[à] existência de uma pluralidade de fontes constitucionais, originador de um contexto de conflitos potenciais entre ordens constitucionais diversas, cuja resolução assenta, num modelo não-hierárquico” (Miguel Poiares Maduro, Interpreting European Law – Judicial Adjudication in a Context of Constitutional Pluralism , cit., p. 1). Com efeito, num quadro relacional que, no presente, envolve vinte e oito ordens jurídicas (a da União, como polo referencial comum, mas dotado de autonomia, e as ordens dos vinte e sete Estados), todas detentoras de pretensões jurídicas assentes em espaços de exclusividade com
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=