TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020

635 acórdão n.º 422/20 União ( rectius , do TJUE), para uma visão absolutamente incondicionada da incidência do princípio, para um entendimento deste completamente “à prova” do Direito constitucional nacional – fator que induz, por vezes, forte pressão sobre as Constituições nacionais e as respetivas jurisdições –, o que é facto é que a prática do TJUE não deixa de nos fornecer uma imagem mais relativizada – e muito mais complexa – da realidade do princípio, quando situado a este nível. E o mesmo sucede com a generalidade das jurisdições constitucio- nais nacionais, na sua interação decisória com o TJUE, a respeito da relação do DUE com o Direito interno dos Estados-membros dotado de estalão constitucional. Tal complexidade, sinal evidente de que nessa relação são feitos atuar pelos intervenientes fatores de adaptação e de conciliação de posições, esteve presente, desde a referenciação expressa do princípio do pri- mado às normas constitucionais nacionais, em 1970, no acórdão Internationale Handelsgesellschaft . Este, como observámos, intencionalmente gerou um espaço de justificação decisória com pontos de redundância, relativamente à jurisdição constitucional alemã, na abordagem de um reenvio que assentava no pressuposto da incompatibilidade de uma norma comunitária com a proteção dos direitos fundamentais na Grundgesetz . E vem perdurando – essa abordagem do primado que designamos como complexa – nas decisões do TJUE cuja base problemática encerrava uma evidente potencialidade geradora de conflitos graves com as jurisdi- ções constitucionais dos Estados-membros. Ilustrando esta asserção – para além de toda a interação decisória entre o Tribunal Constitucional Federal alemão (acórdãos Solange I e II , Bananas , Maastricht e Lisboa ) e o TJUE [por exemplo, no acórdão Gauweiler , de 16 de junho de 2015 (processo C-62/14), respeitante ao mecanismo das OMT, e na subsequente decisão do Bundesverfassungsgericht , de 21 de junho de 2016, sem esquecer, todavia, os últimos desenvolvimentos desta complexa interação relativa às decisões do Banco Central Europeu] –, referiremos especificamente a situação que é habitualmente designada, no jargão dos cultores do DUE, como a saga Taricco (cfr. Matteo Bonelli, “The Taricco saga and the consolidation of judicial dialogue in the European Union”, in Maastricht Journal of European and Comparative Law, vol. 25, n.º 3, 2018, pp. 357/373). Referencia esta expressão o episódio de atrição entre o TJUE e o Tribunal Constitucional italiano relativamente à interpretação fixada pelo primeiro quanto ao artigo 325.º, n. os 1 e 2, do TFUE na decisão Taricco I , de 8 de setembro de 2015 (C-105/14, EU:2015:555), ao determinar que “[i]mcum[bia] ao órgão jurisdicional nacional dar pleno efeito ao artigo 325.º, n. os 1 e 2, TFUE, não aplicando, se necessário, as disposições de direito nacional que têm o efeito de impedir que o Estado-membro em causa respeite as obrigações que lhe são impostas pelo artigo  325.º, n. os 1 e 2, TFUE”. Tenha-se presente que “as disposições de direito nacional” que aí estavam em causa – as que no Direito italiano preveem os prazos de prescrição dos procedimentos penais relativos a fraudes em matéria de IVA –, se “não aplicadas” pelos tribunais nacionais, por as entenderem insuficientes a propiciar um prazo investigatório adequado a uma proteção efetiva dos interesses financeiros da União, colo- cariam em causa o princípio constitucional da legalidade penal, na exigência que este envolve de as disposi- ções penais serem certas, precisas e não retroativas (e, desde logo, não estabelecidas ad hoc pelos tribunais). Isso mesmo foi perguntado pelo Tribunal Constitucional italiano ao TJUE ([d]eve o acórdão [ Taricco ] ser interpretado no sentido de que impõe ao juiz penal que se abstenha de aplicar uma legislação nacional relativa à prescrição que obste […] à repressão de fraudes graves lesivas dos interesses financeiros da União, ou que prevê prazos de prescrição para as fraudes lesivas dos interesses financeiros da União mais curtos do que os previstos para as fraudes lesivas dos interesses financeiros do Estado, mesmo quando essa não aplica- ção seja contrária aos princípios supremos da ordem constitucional do Estado-membro ou aos direitos ina- lienáveis reconhecidos pela Constituição do Estado-membro?”), no quadro de um novo reenvio prejudicial (originado no processo de implementação interna do acórdão Taricco I ; ordinanza n.º 24, de 26 de janeiro de 2017, disponível em: http://www.giurcost.org/decisioni/2017/0024o-17.html ). Gerou este reenvio (que pressagiava uma consistente possibilidade de uso futuro da doutrina dos con- tralimites pela jurisdição constitucional italiana) um novo pronunciamento do TJUE, consubstanciado no que se convencionou designar como decisão Taricco II (acórdão M.A.S. e M.B. , de 5 de dezembro de 2017, C-42/17, EU:C:2017:936), estabelecendo que “[o] artigo  325.º, n. os 1 e 2, TFUE deve ser interpretado no

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