TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
634 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Handelsgesellschaft , acabou por ser ultrapassada, em Solange II , assumindo-se esse tipo de abordagem, impli- citamente, como expressão da partilha de um espaço comum, que tornaria fundamentalmente redundante a intervenção da jurisdição constitucional nacional. Em suma, a existência de uma “[…] aposta reforçada na proteção dos direitos fundamentais no espaço comunitário [criou a convicção] – reforçada pela evolução do Solange I (1974) para o Solange II (1986) – de que tendencialmente ou na prática o direito comunitário se aplicaria de forma prevalecente e não contestada seriamente em todos os Estados-membros” (Rui Medeiros, A Constituição Portuguesa Num Contexto Global, Lisboa, 2015, p. 255). E note-se – valendo como consolidação no plano processual do exato sentido da decisão Solange II –, que o Tribunal Constitucional alemão projetou posteriormente a ratio decidendi desta à categoria de pres- suposto processual de admissibilidade do controlo do DUE, introduzindo um significativo filtro processual de potenciais conflitos. Fê-lo no chamado caso Bananas (decisão de 7 de junho de 2000, 2 Bvl 1/97), ao considerar “[…] que o meio processual para proteção de direitos fundamentais [o recurso de queixa consti- tucional] podia, mas só podia, ser admitido se viesse acompanhado da alegação de que o Tribunal de Justiça europeu não estaria a assegurar o nível exigível de tutela dos direitos fundamentais” (Miguel Galvão Teles, “Constituições dos Estados e Eficácia Interna do Direito da União e das Comunidades Europeias – em Par- ticular sobre o Artigo 8.º, n.º 4, da Constituição Portuguesa”, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, no Centenário do seu Nascimento, vol. II, Lisboa, 2006, p. 301). 2.4. Expressando o princípio do primado um valor identitário do DUE, que garante a efetividade deste e preserva o seu espaço existencial, não deixa de corresponder a uma construção originada na dinâmica afir- mativa própria de um dos lados da relação de ordens jurídicas implicada na pertença à União. É assim que, como observámos no item anterior a respeito das decisões do Tribunal Constitucional alemão Solange I e II , a interação da jurisdição comunitária com as entidades pré-existentes integradas (os Estados-membros, o outro polo dessa relação), gerando situações de sobreposição normativa (real ou aparente), induz com- promissos e a criação de espaços de diálogo e de cooperação, mas não deixa de originar – pela persistência de algumas linhas de fratura – situações relacionais com potencialidade conflitual. Estas implicam, como decorrência do princípio da cooperação leal (artigo 4.º, n.º 3, do TUE) e do empenho no projeto europeu dos atores relevantes desta interação, abordagens de evitação ou de ultrapassagem de impasses, em que a ideia de diálogo – e isto vale, no presente, fundamentalmente para a relação entre o TJUE e os tribunais constitucionais nacionais – se expressa, nas palavras de Maria José Rangel de Mesquita, sob a forma de “[…] um ‘salutar’ confronto […]” ( Introdução ao Contencioso da União Europeia, 3.ª edição, Coimbra, 2018, p. 279: “[q]uanto à perspetiva respeitante ao ‘diálogo’ entre o TJUE e os tribunais constitucionais nacionais, tal diálogo pode assumir várias formas, desde a concordância ou sintonia, até um ‘salutar’ confronto”). O elemento criativo deste confronto, que o adjetivo salutar sinaliza de uma forma particularmente feliz, gerou um processo que podemos descrever como ajustamento de poderes que coabitam um espaço comum, com geometrias variáveis e que permanece dinâmico, de coexistência de ordens jurídicas em constante interação, o qual não expressa, em particular quanto às normas constitucionais nacionais, uma relação hierárquica de fontes propiciadora de coerência sistémica. Daí que a relação de ordenamentos jurídicos travada no quadro da União Europeia só possa ser corre- tamente descrita – analisando a prática dessa relação – como gestão de uma realidade na qual incidem rele- vantes fatores de incoerência sistémica, sublinhando-se, através da síntese de Mattias Kumm, que a prática seguida pelos atores relevantes deste processo de interação – pelos tribunais em particular – conduziu ao “[…] estabelecimento de mecanismos e à projeção de construções que possibilitam um envolvimento mútuo construtivo entre ordens jurídicas”, “[…] mesmo na ausência de uma ordenação hierárquica” [“The Moral Point of Constitutional Pluralism”, in Philosophical Foundations of European Union Law, Julie Dickson e Pavlos Eleftheriadis (eds.), Oxford University Press, Oxford, 2012, p. 217]. Com efeito, mesmo quando a construção jurisprudencial do princípio do primado, referido à relação do DUE com as normas constitucionais dos Estados-membros, aponte, isolando nessa operação o lado da
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